Serendipidade:
Essa
estranha palavra (como nos informa Ethevaldo Siqueira - O Estado de S.
Paulo de 15.02.09, p. B10) significa "algo como sair em busca de uma
coisa e descobrir outra (ou outras), às vezes até mais interessante e
valiosa. Vem do inglês serendipity (de acordo com o Dicionário
Houaiss), onde tem o sentido de descobrir coisas por acaso. Serendip era
o antigo nome da ilha do Ceilão (atual Sri Lanka). A palavra foi
cunhada em 1754 pelo escritor inglês Horace Walpole, no conto de fadas Os três príncipes de Serendip , que sempre faziam descobertas de coisas que não procuravam".
Da
decisão judicial que determina a interceptação telefônica sobressaem,
dentre outros, dois requisitos sumamente relevantes, sendo certo que
ambos estão previstos no art. 2.º , parágrafo único , da Lei 9.296
/96: a) descrição com clareza da situação objeto da investigação; b)
indicação e qualificação dos investigados (dos sujeitos passivos).
Fala-se em parte objetiva (fática) e subjetiva (pessoas) da medida
cautelar. A lei, com inteira razão, preocupou-se com a correta
individualização do fato objeto da persecução, assim como com a pessoa
que está sendo investigada.
Mas no curso da captação da
comunicação telefônica ou telemática podem surgir outros fatos
penalmente relevantes, distintos da "situação objeto da investigação".
Esses fatos podem envolver o investigado ou outras pessoas. De outro
lado, podem aparecer outros envolvidos, com o mesmo fato investigado ou
com outros fatos, diferentes do que motivou a decretação da
interceptação. É nisso que reside o fenômeno da serendipidade, que
significa procurar algo e encontrar coisa distinta (buscar uma coisa e
descobrir outra, estar em busca de um fato ou uma pessoa e descobrir
outro ou outra por acaso).
A doutrina denomina esse fenômeno de "encontro fortuito" ( hallazgos fortuitos ) ou "descubrimientos casuales" ou "descubrimientos acidentales" ou, como se diz na Alemanha, Zufallsfunden .
Damásio E. de Jesus ainda menciona: conhecimento fortuito de outro
crime, novação do objeto da interceptação ou resultado diverso do
pretendido.
Em
princípio, o que se espera é a "identidade" ("congruência") entre o
fato e o sujeito passivo indicados na decisão e o fato e o sujeito
passivo efetivamente investigados (congruência entre o que se procura
investigar e o que efetivamente foi encontrado). Na eventualidade de que
haja discordância (com desvio, portanto, do princípio da identidade ou
da congruência), impõe-se a imediata comunicação de tudo ao juiz
(princípio do controle judicial), para que se delibere a respeito.
A
questão central na serendipidade ou no "encontro fortuito" versa sobre a
validade da prova, é dizer, o meio probatório conquistado com a
interceptação telefônica vale também para os fatos ou pessoas
encontradas fortuitamente?
No direito alemão (StPO, parágrafo 100), consoante jurisprudência pacífica do Tribunal Supremo (BGH),
a prova assim alcançada tem valor jurídico, desde que o fato encontrado
fortuitamente tenha conexão com algum dos crimes que autorizam (em
abstrato) a interceptação telefônica. Não é preciso que haja conexão com
o crime investigado ou com a pessoa investigada, senão com algum dos
crimes constantes do rol previsto no citado dispositivo legal. Essa
solução é muito criticada pela sua amplitude, havendo incontáveis
propostas de restrição.
No direito italiano admite-se,
censuravelmente, qualquer encontro fortuito, desde que o fato descoberto
tenha conexão com algum crime cuja prisão seja obrigatória.
No
direito espanhol não existe uma doutrina incontroversamente formada a
respeito do assunto. O que se sugere, e isso também é válido para nosso
direito, é o seguinte:
é fundamental o "critério da conexão", mas impõe-se delimitar o grau de
conexão necessário para que a prova seja admitida como válida; de outro
lado, é de relevância ímpar a motivação (fundamentação) da decisão
autorizadora da medida, porque nela deve vir descrita a situação objeto
da investigação, assim como o sujeito passivo.
Duas
circunstâncias marcam o "encontro fortuito":
a) que ele acontece por uma razão técnica (na hora da execução da interceptação, não há condições técnicas de distinguir a priori o que versa sobre o objeto da investigação e o que lhe é distinto);
b) que ele se concretiza sem autorização judicial, o que é vedado pelo ordenamento jurídico, justamente por tratar-se de restrição a direito fundamental.
a) que ele acontece por uma razão técnica (na hora da execução da interceptação, não há condições técnicas de distinguir a priori o que versa sobre o objeto da investigação e o que lhe é distinto);
b) que ele se concretiza sem autorização judicial, o que é vedado pelo ordenamento jurídico, justamente por tratar-se de restrição a direito fundamental.
É válida a prova se se descobre "fato delitivo conexo com o investigado", mas desde que de responsabilidade do mesmo sujeito passivo. Logo, se o
fato não é conexo ou se versa sobre outra pessoa, não vale a prova.
Cuida-se de prova nula.
Mas isso não significa que a descoberta não tenha nenhum valor: vale
como fonte de prova, é dizer, a partir dela pode-se desenvolver nova
investigação. Vale, em suma, como uma notitia criminis . Nada impede a abertura de uma nova investigação, até mesmo nova interceptação, mas independente.
O "critério da conexão" (que conduz ao reconhecimento do encontro fortuito de primeiro grau) é perfeitamente válido em nosso ius positum . Aliás, em virtude das peculiaridades do nosso direito, urge falar-se em conexão ou continência. Tudo porque nosso Código de Processo Penal faz essa distinção, nos artigos 76 e 77 .
Em
relação ao encontro fortuito de fatos conexos (ou quando haja
continência) parece-nos acertado falar em serendipidade ou encontro
fortuito de primeiro grau (ou em fato que está na mesma situação
histórica de vida do delito investigado - historischen Lebenssachverhalt ).
Nesse caso a prova produzida tem valor jurídico e deve ser analisada
pelo juiz (como prova válida). Pode essa prova conduzir a uma condenação
penal.
Quando se trata, ao contrário, de fatos não conexos (ou
quando não haja continência), impõe-se falar em serendipidade ou
encontro fortuito de segundo grau (ou em fatos que não estão na mesma
situação histórica de vida do delito investigado). A prova produzida,
nesse caso, não pode ser valorada pelo juiz. Ela vale apenas como notitia criminis .
Conclusão:
se o fato objeto do "encontro fortuito" é conexo ou tem relação de
continência (concurso formal) com o fato investigado, é válida a
interceptação telefônica como meio probatório, inclusive quanto ao fato
extra descoberto. Essa prova deve ser valorada pelo juiz. Exemplo:
autorização dada para a investigação de um tráfico de entorpecente;
descobre-se fortuitamente um homicídio, em conexão teleológica. De outra
parte, se se descobre o envolvimento de outra pessoa no crime
investigado (de tal forma a caracterizar a continência do art. 77),
também é válido tal meio probatório. Nessas duas hipóteses, em suma, a
transcrição final da captação feita vale legitimamente como meio
probatório e serve para afetar ("enervar") o princípio da presunção de
inocência.
Edson Moura (E.M. Matéria de Direito)
Edson Moura (E.M. Matéria de Direito)
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