Hierarquia e Disciplina na
Polícia Penal: O Alicerce da Instituição e o Regime Disciplinar Aplicável aos
Servidores
A Emenda Constitucional (EC) nº
104/2019, ao incluir a Polícia Penal no seleto rol de órgãos de segurança
pública previstos no Artigo 144 da Constituição Federal, não apenas conferiu
reconhecimento e status à categoria, mas também a inseriu em
um regime jurídico peculiar e mais rigoroso, típico das forças de segurança.
A base que sustenta o
funcionamento de qualquer instituição policial é o binômio hierarquia e
disciplina. Esses princípios são a espinha dorsal que garante a coesão, a
obediência à cadeia de comando e a eficiência na resposta a crises, que são
inerentes ao ambiente prisional.
Este capítulo do Manual Jurídico
do Policial Penal tem como objetivo dissecar o conceito de hierarquia e
disciplina no contexto da Polícia Penal e, fundamentalmente, analisar o
arcabouço normativo que rege o regime disciplinar dos servidores — o
Regulamento Disciplinar —, bem como abordar a possibilidade, ou não, da
aplicação de um "Regime Disciplinar Diferenciado (RDD)" ou
equivalente para policiais penais que cometem faltas graves.
1. O Princípio da Hierarquia:
A Estrutura Vertical de Comando
A hierarquia é a ordenação em
níveis de autoridade e subordinação, estabelecendo uma cadeia de comando clara
e ininterrupta. No serviço público em geral, a hierarquia existe, mas nas
carreiras policiais, ela assume uma importância vital.
1.1. A Cadeia de Comando na
Polícia Penal
A estrutura hierárquica da
Polícia Penal varia ligeiramente entre os entes federativos, mas geralmente
segue uma progressão de cargos, no caso da polícia Penal do estado de são Paulo
por exemplo, a carreira de Policial Penal é organizada em níveis e categorias,
estabelecendo uma progressão vertical baseada em critérios de desempenho e
desenvolvimento. Embora a nomenclatura exata dos postos de comando (como
"Inspetor Chefe", "Diretor", "Coordenador") seja
atribuída a funções de confiança e gratificações (Gratificação de Gestão
Policial Penal - GGPP) dentro da estrutura organizacional da Secretaria da
Administração Penitenciária (SAP), a base da carreira é composta por:
- Nível: Elemento numérico (ex: Nível I, Nível II) que indica a posição do policial penal na escala de evolução funcional.
- Categoria: Elemento alfabético (ex:
Categoria A, B, C) que indica a posição do policial penal dentro do nível
respectivo.
A progressão entre níveis e
categorias ocorre por meio de critérios de evolução funcional e promoção.
. Essa estrutura define:
- Subordinação: O dever do subordinado de
obedecer às ordens legais emanadas de seus superiores.
- Competência: A delimitação de quem tem
o poder de dar ordens e em quais matérias.
O Policial Penal, na base ou no
topo da carreira, deve ter clareza sobre a linha de comando. A ordem superior
deve ser cumprida, salvo uma exceção fundamental: a ordem manifestamente
ilegal.
1.2. A Ordem Ilegal e o Dever
de Recusa
A lei penal brasileira (Art. 22
do Código Penal) e os estatutos disciplinares preveem que, se a ordem superior
é manifestamente ilegal (ou seja, seu conteúdo é um crime ou uma grave violação
de direito), o subordinado não apenas pode, mas deve recusar-se
a cumpri-la. O cumprimento de ordem ilegal não exime o subordinado de
responsabilidade penal ou administrativa.
Isso exige discernimento jurídico
do policial penal, que deve ser capaz de identificar a ilegalidade de uma
ordem, como, por exemplo, a determinação de praticar tortura ou de violar os
direitos de um custodiado.
2. O Princípio da Disciplina:
A Base da Ordem Institucional
A disciplina é o pilar que
garante o funcionamento da hierarquia. Ela se traduz na "observância e no
acatamento das leis, regulamentos, normas e ordens". A disciplina policial
penal é um valor ético e profissional que exige:
- Prontidão: Estar sempre pronto para o
serviço e para a resposta a crises.
- Regularidade: Cumprir horários,
procedimentos e deveres de forma constante e confiável.
- Comportamento Exemplar: Manter uma
conduta ilibada dentro e fora do serviço, digna da função de segurança pública.
A disciplina não é um fim em si
mesma, mas um meio para garantir que a missão da Polícia Penal — a segurança
dos estabelecimentos e a custódia dos presos — seja cumprida de forma eficaz e
uniforme em todo o sistema.
3. O Regulamento Disciplinar dos
Servidores: O "RDD do Servidor"
O principal instrumento que
materializa a hierarquia e a disciplina é o Regulamento Disciplinar dos
Servidores (ou o capítulo disciplinar no Estatuto dos Servidores Públicos
local). Ele é o código de conduta que tipifica as transgressões disciplinares e
estabelece as penalidades.
3.1. Transgressões
Disciplinares: Tipificação e Gravidade
Os regulamentos disciplinares
classificam as faltas em leves, médias e graves. Exemplos comuns incluem:
- Leves: Atrasos, ausências injustificadas
de curta duração, falta de urbanidade.
- Médias: Reincidência em faltas leves,
negligência no serviço, uso indevido de bens públicos.
- Graves: Abandono de cargo,
insubordinação grave, corrupção, agressão física a superior ou custodiado,
porte de arma irregular, revelação de segredo profissional, embriaguez em
serviço, e infrações penais (crimes).
3.2. As Penalidades:
Proporcionalidade e Punição
As penalidades aplicáveis seguem
a gravidade da falta e a reincidência do servidor:
- Advertência: Para faltas leves.
- Suspensão: Para faltas médias e algumas
graves (geralmente até 90 dias, com perda de remuneração nos dias de
suspensão).
- Demissão: A pena capital do serviço
público, aplicada exclusivamente às faltas graves que quebram a confiança
e a moralidade da instituição (ex: corrupção, crime contra a administração
pública, inassiduidade habitual, abandono de cargo).
3.3. O Devido Processo Legal
(PAD)
A aplicação de qualquer
penalidade grave exige a instauração do Processo Administrativo Disciplinar
(PAD). O PAD é a garantia do servidor ao devido processo legal, ao
contraditório e à ampla defesa. A inobservância do rito legal do PAD pode levar
à anulação de toda a punição pela via judicial. A transparência e a legalidade
no PAD são essenciais para a legitimidade da disciplina.
4. O Regime Disciplinar
Diferenciado (RDD) para Servidores?
O Regime Disciplinar Diferenciado
(RDD) é um instituto previsto na Lei de Execução Penal (LEP), Art. 52, aplicado
a presos que cometem faltas graves (como liderar rebeliões, praticar crimes na
prisão) ou que apresentam alto risco para a segurança pública (membros de
facções criminosas). Ele impõe isolamento celular, restrições de visitas e
maior rigor na custódia.
A questão que se coloca é: existe
um RDD para o policial penal que comete uma falta grave?
4.1. Incompatibilidade
Conceitual
A resposta direta é não
existe RDD para servidor. O RDD é um regime de cumprimento de pena
privativa de liberdade, aplicado a condenados ou presos provisórios. O policial
penal é um servidor público, não um detento. Seu regime jurídico é o
administrativo-disciplinar, não o penal-executório.
4.2. Medidas Cautelares e o
Afastamento Preventivo
No entanto, quando um policial
penal comete uma falta grave, especialmente uma que envolva risco à segurança
da unidade prisional, à investigação (coação de testemunhas) ou à ordem
pública, o direito administrativo prevê medidas cautelares que possuem efeitos
práticos similares ao isolamento temporário.
O Estatuto dos Servidores
Públicos geralmente prevê o afastamento preventivo ou a suspensão
preventiva do servidor.
- Finalidade: Essas medidas não são
punição antecipada. Têm caráter cautelar e visam garantir que o servidor
não interfira na apuração dos fatos durante o PAD, ou que não continue a
colocar em risco o ambiente de trabalho.
- Duração: Têm prazo determinado (ex: 60
ou 90 dias, prorrogáveis uma vez) e o servidor, em regra, continua
recebendo sua remuneração durante esse período, pois a presunção de
inocência administrativa ainda vigora.
4.3. A Questão da Prisão
Preventiva
Se a falta grave cometida pelo
policial penal configurar, também, um crime grave (ex: tortura, corrupção), a
autoridade judicial, a pedido do Ministério Público ou da autoridade policial
judiciária (Polícia Civil ou Federal), pode decretar a prisão preventiva do
servidor, nos termos do Código de Processo Penal. Nesse caso, ele será
recolhido a um estabelecimento prisional específico (sala de Estado Maior ou
quartel, se houver previsão legal, ou presídio comum, a depender da legislação
local e do status da carreira), onde cumprirá a cautelar
processual, não um RDD.
A Rigidez do Regime
Policial
A hierarquia e a disciplina são
princípios inegociáveis para a Polícia Penal. O Regulamento Disciplinar é a
ferramenta que garante a manutenção desses princípios, estabelecendo um regime
de deveres mais rígido do que o do servidor público comum.
O Policial Penal deve ter em
mente que sua conduta é constantemente avaliada e que as consequências de uma
falta disciplinar são severas, podendo culminar na perda do cargo por demissão.
Embora o RDD seja exclusivo para a população carcerária, as medidas cautelares
de afastamento e a possibilidade de prisão preventiva garantem que o Estado
possa agir com a devida rigidez quando um de seus agentes viola o juramento de
proteger a sociedade e cumprir a lei.
"Manual Jurídico do Policial Penal" por Edson Moura
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