segunda-feira, 1 de dezembro de 2025

Hierarquia e Disciplina na Polícia Penal

 

Hierarquia e Disciplina na Polícia Penal: O Alicerce da Instituição e o Regime Disciplinar Aplicável aos Servidores

A Emenda Constitucional (EC) nº 104/2019, ao incluir a Polícia Penal no seleto rol de órgãos de segurança pública previstos no Artigo 144 da Constituição Federal, não apenas conferiu reconhecimento e status à categoria, mas também a inseriu em um regime jurídico peculiar e mais rigoroso, típico das forças de segurança.

A base que sustenta o funcionamento de qualquer instituição policial é o binômio hierarquia e disciplina. Esses princípios são a espinha dorsal que garante a coesão, a obediência à cadeia de comando e a eficiência na resposta a crises, que são inerentes ao ambiente prisional.

Este capítulo do Manual Jurídico do Policial Penal tem como objetivo dissecar o conceito de hierarquia e disciplina no contexto da Polícia Penal e, fundamentalmente, analisar o arcabouço normativo que rege o regime disciplinar dos servidores — o Regulamento Disciplinar —, bem como abordar a possibilidade, ou não, da aplicação de um "Regime Disciplinar Diferenciado (RDD)" ou equivalente para policiais penais que cometem faltas graves.


1. O Princípio da Hierarquia: A Estrutura Vertical de Comando

A hierarquia é a ordenação em níveis de autoridade e subordinação, estabelecendo uma cadeia de comando clara e ininterrupta. No serviço público em geral, a hierarquia existe, mas nas carreiras policiais, ela assume uma importância vital.

1.1. A Cadeia de Comando na Polícia Penal

A estrutura hierárquica da Polícia Penal varia ligeiramente entre os entes federativos, mas geralmente segue uma progressão de cargos, no caso da polícia Penal do estado de são Paulo por exemplo, a carreira de Policial Penal é organizada em níveis e categorias, estabelecendo uma progressão vertical baseada em critérios de desempenho e desenvolvimento. Embora a nomenclatura exata dos postos de comando (como "Inspetor Chefe", "Diretor", "Coordenador") seja atribuída a funções de confiança e gratificações (Gratificação de Gestão Policial Penal - GGPP) dentro da estrutura organizacional da Secretaria da Administração Penitenciária (SAP), a base da carreira é composta por: 

  • Nível: Elemento numérico (ex: Nível I, Nível II) que indica a posição do policial penal na escala de evolução funcional.

  • Categoria: Elemento alfabético (ex: Categoria A, B, C) que indica a posição do policial penal dentro do nível respectivo. 

A progressão entre níveis e categorias ocorre por meio de critérios de evolução funcional e promoção.

. Essa estrutura define:

  • Subordinação: O dever do subordinado de obedecer às ordens legais emanadas de seus superiores.

  • Competência: A delimitação de quem tem o poder de dar ordens e em quais matérias.

O Policial Penal, na base ou no topo da carreira, deve ter clareza sobre a linha de comando. A ordem superior deve ser cumprida, salvo uma exceção fundamental: a ordem manifestamente ilegal.

1.2. A Ordem Ilegal e o Dever de Recusa

A lei penal brasileira (Art. 22 do Código Penal) e os estatutos disciplinares preveem que, se a ordem superior é manifestamente ilegal (ou seja, seu conteúdo é um crime ou uma grave violação de direito), o subordinado não apenas pode, mas deve recusar-se a cumpri-la. O cumprimento de ordem ilegal não exime o subordinado de responsabilidade penal ou administrativa.

Isso exige discernimento jurídico do policial penal, que deve ser capaz de identificar a ilegalidade de uma ordem, como, por exemplo, a determinação de praticar tortura ou de violar os direitos de um custodiado.


2. O Princípio da Disciplina: A Base da Ordem Institucional

A disciplina é o pilar que garante o funcionamento da hierarquia. Ela se traduz na "observância e no acatamento das leis, regulamentos, normas e ordens". A disciplina policial penal é um valor ético e profissional que exige:

  • Prontidão: Estar sempre pronto para o serviço e para a resposta a crises.
  • Regularidade: Cumprir horários, procedimentos e deveres de forma constante e confiável.
  • Comportamento Exemplar: Manter uma conduta ilibada dentro e fora do serviço, digna da função de segurança pública.

A disciplina não é um fim em si mesma, mas um meio para garantir que a missão da Polícia Penal — a segurança dos estabelecimentos e a custódia dos presos — seja cumprida de forma eficaz e uniforme em todo o sistema.


3. O Regulamento Disciplinar dos Servidores: O "RDD do Servidor"

O principal instrumento que materializa a hierarquia e a disciplina é o Regulamento Disciplinar dos Servidores (ou o capítulo disciplinar no Estatuto dos Servidores Públicos local). Ele é o código de conduta que tipifica as transgressões disciplinares e estabelece as penalidades.

3.1. Transgressões Disciplinares: Tipificação e Gravidade

Os regulamentos disciplinares classificam as faltas em leves, médias e graves. Exemplos comuns incluem:

  • Leves: Atrasos, ausências injustificadas de curta duração, falta de urbanidade.
  • Médias: Reincidência em faltas leves, negligência no serviço, uso indevido de bens públicos.
  • Graves: Abandono de cargo, insubordinação grave, corrupção, agressão física a superior ou custodiado, porte de arma irregular, revelação de segredo profissional, embriaguez em serviço, e infrações penais (crimes).

3.2. As Penalidades: Proporcionalidade e Punição

As penalidades aplicáveis seguem a gravidade da falta e a reincidência do servidor:

  • Advertência: Para faltas leves.
  • Suspensão: Para faltas médias e algumas graves (geralmente até 90 dias, com perda de remuneração nos dias de suspensão).
  • Demissão: A pena capital do serviço público, aplicada exclusivamente às faltas graves que quebram a confiança e a moralidade da instituição (ex: corrupção, crime contra a administração pública, inassiduidade habitual, abandono de cargo).

3.3. O Devido Processo Legal (PAD)

A aplicação de qualquer penalidade grave exige a instauração do Processo Administrativo Disciplinar (PAD). O PAD é a garantia do servidor ao devido processo legal, ao contraditório e à ampla defesa. A inobservância do rito legal do PAD pode levar à anulação de toda a punição pela via judicial. A transparência e a legalidade no PAD são essenciais para a legitimidade da disciplina.


4. O Regime Disciplinar Diferenciado (RDD) para Servidores?

O Regime Disciplinar Diferenciado (RDD) é um instituto previsto na Lei de Execução Penal (LEP), Art. 52, aplicado a presos que cometem faltas graves (como liderar rebeliões, praticar crimes na prisão) ou que apresentam alto risco para a segurança pública (membros de facções criminosas). Ele impõe isolamento celular, restrições de visitas e maior rigor na custódia.

A questão que se coloca é: existe um RDD para o policial penal que comete uma falta grave?

4.1. Incompatibilidade Conceitual

A resposta direta é não existe RDD para servidor. O RDD é um regime de cumprimento de pena privativa de liberdade, aplicado a condenados ou presos provisórios. O policial penal é um servidor público, não um detento. Seu regime jurídico é o administrativo-disciplinar, não o penal-executório.

4.2. Medidas Cautelares e o Afastamento Preventivo

No entanto, quando um policial penal comete uma falta grave, especialmente uma que envolva risco à segurança da unidade prisional, à investigação (coação de testemunhas) ou à ordem pública, o direito administrativo prevê medidas cautelares que possuem efeitos práticos similares ao isolamento temporário.

O Estatuto dos Servidores Públicos geralmente prevê o afastamento preventivo ou a suspensão preventiva do servidor.

  • Finalidade: Essas medidas não são punição antecipada. Têm caráter cautelar e visam garantir que o servidor não interfira na apuração dos fatos durante o PAD, ou que não continue a colocar em risco o ambiente de trabalho.
  • Duração: Têm prazo determinado (ex: 60 ou 90 dias, prorrogáveis uma vez) e o servidor, em regra, continua recebendo sua remuneração durante esse período, pois a presunção de inocência administrativa ainda vigora.

4.3. A Questão da Prisão Preventiva

Se a falta grave cometida pelo policial penal configurar, também, um crime grave (ex: tortura, corrupção), a autoridade judicial, a pedido do Ministério Público ou da autoridade policial judiciária (Polícia Civil ou Federal), pode decretar a prisão preventiva do servidor, nos termos do Código de Processo Penal. Nesse caso, ele será recolhido a um estabelecimento prisional específico (sala de Estado Maior ou quartel, se houver previsão legal, ou presídio comum, a depender da legislação local e do status da carreira), onde cumprirá a cautelar processual, não um RDD.

A Rigidez do Regime Policial

A hierarquia e a disciplina são princípios inegociáveis para a Polícia Penal. O Regulamento Disciplinar é a ferramenta que garante a manutenção desses princípios, estabelecendo um regime de deveres mais rígido do que o do servidor público comum.

O Policial Penal deve ter em mente que sua conduta é constantemente avaliada e que as consequências de uma falta disciplinar são severas, podendo culminar na perda do cargo por demissão. Embora o RDD seja exclusivo para a população carcerária, as medidas cautelares de afastamento e a possibilidade de prisão preventiva garantem que o Estado possa agir com a devida rigidez quando um de seus agentes viola o juramento de proteger a sociedade e cumprir a lei.

"Manual Jurídico do Policial Penal" por Edson Moura

 

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