sábado, 6 de dezembro de 2025

A Ética e a Lei como Limites Inegociáveis

 



O Dever de Tratamento Digno e a Fronteira do Inadmissível: Tortura, Maus-tratos e o Uso Abusivo da Força no Contexto Policial Penal

A função do policial penal é, por definição, coercitiva. O exercício do poder de custódia e a manutenção da ordem em ambientes de privação de liberdade exigem o uso da autoridade e, em situações extremas, da força física para conter distúrbios, prevenir fugas e garantir a segurança de todos os presentes.

 Contudo, esse poder não é ilimitado; ele encontra barreiras intransponíveis na Constituição Federal e na legislação penal e processual. A linha que separa o uso legítimo da força do abuso de autoridade, dos maus-tratos e, em sua forma mais grave, da tortura, é tênue e deve ser perfeitamente conhecida por todo profissional da segurança pública.

A Emenda Constitucional nº 104/2019, que inseriu a Polícia Penal no rol do Artigo 144 da CF, reforçou a necessidade de uma atuação profissional, técnica e estritamente legal, alinhada aos princípios dos direitos humanos e à Lei nº 9.455/1997, que define os crimes de tortura.

Este capítulo do manual jurídico tem como objetivo definir o dever de tratamento digno ao custodiado, delimitar as proibições absolutas de tortura e maus-tratos, e estabelecer as diretrizes para o uso legítimo e proporcional da força pelo policial penal.


1. O Dever de Tratamento Digno e a Dignidade da Pessoa Humana

O Artigo 1º, inciso III, da Constituição Federal, elege a dignidade da pessoa humana como fundamento da República Federativa do Brasil. Este princípio irradia seus efeitos para todas as relações jurídicas, inclusive e, talvez, principalmente, para o sistema de execução penal.

A Lei de Execução Penal (LEP), em seu Artigo 3º, é taxativa ao garantir ao preso todos os direitos não atingidos pela sentença condenatória. O direito à integridade física e moral é um desses direitos inalienáveis.

O policial penal não é apenas um "guarda"; é um agente do Estado incumbido de garantir que a pena seja cumprida de forma digna. Isso implica:

  • Zelo pela Integridade Física e Moral: O dever de proteger o preso de agressões de outros detentos, de si mesmo e, principalmente, de abusos cometidos por agentes públicos.

  • Urbanidade e Respeito: A forma como o policial penal se dirige ao preso deve ser pautada pelo respeito, evitando humilhações, apelidos vexatórios ou linguagem agressiva e degradante.

  • Garantia de Condições Mínimas: Assegurar o acesso à saúde, alimentação adequada, higiene e condições sanitárias mínimas, conforme previsto nas Regras de Mandela.

A violação do dever de tratamento digno abre a porta para a responsabilização do agente, que pode incorrer em crimes graves previstos no Código Penal, na Lei de Abuso de Autoridade (Lei nº 13.869/2019) e, em última instância, na Lei de Tortura.


2. A Proibição Absoluta da Tortura (Lei nº 9.455/1997)

O Brasil possui uma legislação específica e rigorosa sobre a tortura: a Lei nº 9.455, de 7 de abril de 1997. Esta lei tipifica o crime de tortura e estabelece penas severas para quem a pratica, a omite ou a incita.

A tortura é uma proibição absoluta, inegociável e que não admite exceções, nem mesmo em situações de estado de defesa, emergência ou guerra.

2.1. O que é o Crime de Tortura? (Art. 1º, Lei nº 9.455/97)

A lei define a tortura em diferentes modalidades. Para o policial penal, duas delas são as mais relevantes:

a) Tortura-Prova ou Tortura Confessória (Art. 1º, I, "a" e "b")

É a conduta de constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental, com o fim de obter informação, declaração ou confissão da vítima ou de terceiros.

Exemplo Prático para o PP:
Um policial penal, durante um procedimento de revista após um motim, agride fisicamente um preso com socos e chutes, exigindo que ele informe onde outros detentos esconderam armas ou quem foi o líder da rebelião.

  • Análise: A violência e o sofrimento são empregados com uma finalidade específica: obter uma informação. Isso configura o crime de tortura. A informação obtida por meio de tortura é considerada "prova ilícita" e não pode ser usada em nenhum processo judicial ou administrativo.

b) Tortura como Castigo ou Punição (Art. 1º, I, "c")

É a conduta de constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental, em razão de a vítima ter cometido algum ato.

Exemplo Prático para o PP:
Um preso cometeu uma falta disciplinar grave (ex: agrediu outro preso ou desobedeceu a uma ordem). Como "punição extraoficial", um grupo de policiais penais o leva para uma cela isolada, aplica-lhe choques elétricos, priva-o de água por horas ou o submete a posições degradantes por um longo período.

  • Análise: A conduta é praticada em retaliação a um ato anterior do preso. Isso não é uma sanção disciplinar (que deve seguir o rito da LEP e do PAD); é um ato de vingança e punição ilegal, que configura tortura.

c) Tortura Omissiva (Art. 1º, § 2º)

A lei pune não apenas quem pratica a tortura, mas também quem tem o dever de evitá-la e se omite.

Exemplo Prático para o PP:
O policial penal "A" presencia o policial penal "B" agredindo um preso. O policial "A", embora não participe da agressão, nada faz para impedir a ação, não interfere e não comunica o fato à autoridade superior.

  • Análise: O policial "A" possui o dever legal de agir (garantidor), pois detém a custódia do preso. Sua omissão o torna coautor do crime de tortura por omissão.

2.2. Consequências Jurídicas da Tortura

As consequências do crime de tortura são severas:

  • Pena: Reclusão de dois a oito anos (aumentada de um sexto a um terço se o crime é cometido por agente público).
  • Inafiançabilidade e Imprescritibilidade: A CF/88 (Art. 5º, XLIII) estabelece que a tortura é inafiançável e insuscetível de graça ou anistia.
  • Perda do Cargo: A condenação acarreta automaticamente a perda do cargo, função ou emprego público e a interdição para seu exercício pelo dobro do prazo da pena aplicada.
  • Regime de Cumprimento: O crime de tortura é hediondo por equiparação, o que implica em regime inicial fechado para cumprimento da pena, a depender da interpretação judicial atual.

3. Maus-tratos e o Uso Abusivo da Força

Nem toda conduta abusiva atinge a gravidade da tortura. No entanto, maus-tratos e o uso abusivo da força também são crimes e infrações disciplinares graves.

3.1. Maus-tratos (Art. 136, Código Penal)

A conduta de "expor a perigo a vida ou a saúde de pessoa sob sua autoridade, guarda ou vigilância, para fim de educação, ensino, tratamento ou custódia, quer privando-a de alimentação ou cuidados indispensáveis, quer sujeitando-a a trabalho excessivo ou inadequado, ou abusando dos meios de correção ou disciplina" configura maus-tratos.

Exemplo Prático para o PP:
Como punição por uma falta leve, o policial penal tranca o preso em uma cela sem colchão, sem luz e sem acesso ao banheiro por algumas horas, privando-o de cuidados indispensáveis.

  • Análise: Embora a intenção não seja necessariamente obter confissão (tortura-prova) ou um castigo com sofrimento extremo (tortura-castigo), a ação expõe a saúde do preso a perigo e abusa dos meios de disciplina. Isso pode ser enquadrado como maus-tratos.

3.2. Uso Legítimo versus Abusivo da Força

O uso da força pelo policial penal é autorizado pelo Código Penal (Art. 23, III - Estrito Cumprimento do Dever Legal e Exercício Regular de Direito) e pela LEP, mas deve seguir princípios internacionais de proporcionalidade e necessidade:

  • Princípio da Legalidade: A força só pode ser usada em conformidade com a lei e os regulamentos internos.

  • Princípio da Necessidade: A força só pode ser usada quando absolutamente necessária para um propósito legítimo (evitar uma fuga, conter uma agressão). Se a verbalização ou a negociação são suficientes, a força é proibida.

  • Princípio da Proporcionalidade: A força usada deve ser proporcional à ameaça ou à resistência do preso. O uso de arma de fogo contra um preso desarmado que tenta fugir do pátio de sol, por exemplo, é desproporcional e ilegal.

  • Princípio da Progressividade: O uso da força deve ser gradual (verbalização, contenção física, uso de equipamentos menos letais, arma de fogo como último recurso).

O uso abusivo da força ocorre quando esses princípios são violados.

Exemplo Prático para o PP (Uso Legítimo):
Um preso tenta esfaquear outro com uma arma artesanal. O policial penal, após ordenar a cessação da agressão (verbalização), utiliza spray de pimenta ou bastão de contenção para desarmar e imobilizar o agressor.

Exemplo Prático para o PP (Uso Abusivo):
O preso é imobilizado, algemado e já não oferece resistência. O policial penal continua a agredi-lo com socos no rosto "para dar uma lição".

  • Análise: No segundo caso, a força já não é mais necessária. Torna-se punitiva e abusiva, podendo configurar lesão corporal, abuso de autoridade ou, a depender da gravidade e do dolo, tortura.

A Ética e a Lei como Limites Inegociáveis

A função do policial penal é essencial para a segurança pública e a administração da justiça. No entanto, a autoridade conferida pelo Estado deve ser exercida com responsabilidade e dentro dos limites da lei.

O dever de tratamento digno é a regra; a tortura, os maus-tratos e o uso abusivo da força são exceções criminosas que mancham a imagem da instituição e afastam o Estado de Direito. O policial penal, ao dominar a Lei nº 9.455/1997 e os princípios do uso da força, protege não apenas os direitos dos custodiados, mas, fundamentalmente, sua própria integridade profissional e sua liberdade. A legalidade e a ética são os maiores escudos do policial penal contra a responsabilização penal e administrativa.

 

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