O Dever de Tratamento Digno e a Fronteira do
Inadmissível: Tortura, Maus-tratos e o Uso Abusivo da Força no Contexto
Policial Penal
A função do policial penal é, por definição, coercitiva. O exercício do poder de custódia e a manutenção da ordem em ambientes de privação de liberdade exigem o uso da autoridade e, em situações extremas, da força física para conter distúrbios, prevenir fugas e garantir a segurança de todos os presentes.
Contudo, esse poder não é ilimitado; ele encontra barreiras intransponíveis
na Constituição Federal e na legislação penal e processual. A linha que separa
o uso legítimo da força do abuso de autoridade, dos maus-tratos e, em sua forma
mais grave, da tortura, é tênue e deve ser perfeitamente conhecida por todo
profissional da segurança pública.
A Emenda Constitucional nº 104/2019, que inseriu a Polícia
Penal no rol do Artigo 144 da CF, reforçou a necessidade de uma atuação
profissional, técnica e estritamente legal, alinhada aos princípios dos
direitos humanos e à Lei nº 9.455/1997, que define os crimes de tortura.
Este capítulo do manual jurídico tem como objetivo definir o
dever de tratamento digno ao custodiado, delimitar as proibições absolutas de
tortura e maus-tratos, e estabelecer as diretrizes para o uso legítimo e proporcional
da força pelo policial penal.
1. O Dever de Tratamento Digno e a Dignidade da Pessoa
Humana
O Artigo 1º, inciso III, da Constituição Federal, elege a
dignidade da pessoa humana como fundamento da República Federativa do Brasil.
Este princípio irradia seus efeitos para todas as relações jurídicas, inclusive
e, talvez, principalmente, para o sistema de execução penal.
A Lei de Execução Penal (LEP), em seu Artigo 3º, é taxativa
ao garantir ao preso todos os direitos não atingidos pela sentença condenatória.
O direito à integridade física e moral é um desses direitos inalienáveis.
O policial penal não é apenas um "guarda"; é um
agente do Estado incumbido de garantir que a pena seja cumprida de forma digna.
Isso implica:
- Zelo
pela Integridade Física e Moral: O dever de proteger o preso de
agressões de outros detentos, de si mesmo e, principalmente, de abusos
cometidos por agentes públicos.
- Urbanidade
e Respeito: A forma como o policial penal se dirige ao preso deve
ser pautada pelo respeito, evitando humilhações, apelidos vexatórios ou
linguagem agressiva e degradante.
- Garantia
de Condições Mínimas: Assegurar o acesso à saúde, alimentação
adequada, higiene e condições sanitárias mínimas, conforme previsto nas
Regras de Mandela.
A violação do dever de tratamento digno abre a porta para a
responsabilização do agente, que pode incorrer em crimes graves previstos no
Código Penal, na Lei de Abuso de Autoridade (Lei nº 13.869/2019) e, em última
instância, na Lei de Tortura.
2. A Proibição Absoluta da Tortura (Lei nº 9.455/1997)
O Brasil possui uma legislação específica e rigorosa sobre a
tortura: a Lei nº 9.455, de 7 de abril de 1997. Esta lei tipifica o crime de
tortura e estabelece penas severas para quem a pratica, a omite ou a incita.
A tortura é uma proibição absoluta, inegociável e que não
admite exceções, nem mesmo em situações de estado de defesa, emergência ou
guerra.
2.1. O que é o Crime de Tortura? (Art. 1º, Lei nº
9.455/97)
A lei define a tortura em diferentes modalidades. Para o
policial penal, duas delas são as mais relevantes:
a) Tortura-Prova ou Tortura Confessória (Art. 1º, I,
"a" e "b")
É a conduta de constranger alguém com emprego de
violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental, com o
fim de obter informação, declaração ou confissão da vítima ou de terceiros.
Exemplo Prático para o PP:
Um policial penal, durante um procedimento de revista após um motim, agride
fisicamente um preso com socos e chutes, exigindo que ele informe onde outros
detentos esconderam armas ou quem foi o líder da rebelião.
- Análise: A
violência e o sofrimento são empregados com uma finalidade específica:
obter uma informação. Isso configura o crime de tortura. A informação
obtida por meio de tortura é considerada "prova ilícita" e não
pode ser usada em nenhum processo judicial ou administrativo.
b) Tortura como Castigo ou Punição (Art. 1º, I,
"c")
É a conduta de constranger alguém com emprego de violência
ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental, em razão de
a vítima ter cometido algum ato.
Exemplo Prático para o PP:
Um preso cometeu uma falta disciplinar grave (ex: agrediu outro preso ou
desobedeceu a uma ordem). Como "punição extraoficial", um grupo de
policiais penais o leva para uma cela isolada, aplica-lhe choques elétricos,
priva-o de água por horas ou o submete a posições degradantes por um longo
período.
- Análise: A
conduta é praticada em retaliação a um ato anterior do preso. Isso não é
uma sanção disciplinar (que deve seguir o rito da LEP e do PAD); é um ato
de vingança e punição ilegal, que configura tortura.
c) Tortura Omissiva (Art. 1º, § 2º)
A lei pune não apenas quem pratica a tortura, mas também
quem tem o dever de evitá-la e se omite.
Exemplo Prático para o PP:
O policial penal "A" presencia o policial penal "B" agredindo
um preso. O policial "A", embora não participe da agressão, nada faz
para impedir a ação, não interfere e não comunica o fato à autoridade superior.
- Análise: O
policial "A" possui o dever legal de agir (garantidor), pois
detém a custódia do preso. Sua omissão o torna coautor do crime de tortura
por omissão.
2.2. Consequências Jurídicas da Tortura
As consequências do crime de tortura são severas:
- Pena: Reclusão
de dois a oito anos (aumentada de um sexto a um terço se o crime é
cometido por agente público).
- Inafiançabilidade
e Imprescritibilidade: A CF/88 (Art. 5º, XLIII) estabelece que a
tortura é inafiançável e insuscetível de graça ou anistia.
- Perda
do Cargo: A condenação acarreta automaticamente a perda do cargo,
função ou emprego público e a interdição para seu exercício pelo dobro do
prazo da pena aplicada.
- Regime
de Cumprimento: O crime de tortura é hediondo por equiparação, o
que implica em regime inicial fechado para cumprimento da pena, a depender
da interpretação judicial atual.
3. Maus-tratos e o Uso Abusivo da Força
Nem toda conduta abusiva atinge a gravidade da tortura. No
entanto, maus-tratos e o uso abusivo da força também são crimes e infrações
disciplinares graves.
3.1. Maus-tratos (Art. 136, Código Penal)
A conduta de "expor a perigo a vida ou a saúde de
pessoa sob sua autoridade, guarda ou vigilância, para fim de educação, ensino,
tratamento ou custódia, quer privando-a de alimentação ou cuidados
indispensáveis, quer sujeitando-a a trabalho excessivo ou inadequado, ou
abusando dos meios de correção ou disciplina" configura maus-tratos.
Exemplo Prático para o PP:
Como punição por uma falta leve, o policial penal tranca o preso em uma cela
sem colchão, sem luz e sem acesso ao banheiro por algumas horas, privando-o de
cuidados indispensáveis.
- Análise: Embora
a intenção não seja necessariamente obter confissão (tortura-prova) ou um
castigo com sofrimento extremo (tortura-castigo), a ação expõe a saúde do
preso a perigo e abusa dos meios de disciplina. Isso pode ser enquadrado
como maus-tratos.
3.2. Uso Legítimo versus Abusivo da
Força
O uso da força pelo policial penal é autorizado pelo Código
Penal (Art. 23, III - Estrito Cumprimento do Dever Legal e Exercício Regular de
Direito) e pela LEP, mas deve seguir princípios internacionais de proporcionalidade
e necessidade:
- Princípio
da Legalidade: A força só pode ser usada em conformidade com a
lei e os regulamentos internos.
- Princípio
da Necessidade: A força só pode ser usada quando absolutamente
necessária para um propósito legítimo (evitar uma fuga, conter uma
agressão). Se a verbalização ou a negociação são suficientes, a força é
proibida.
- Princípio
da Proporcionalidade: A força usada deve ser proporcional à
ameaça ou à resistência do preso. O uso de arma de fogo contra um preso
desarmado que tenta fugir do pátio de sol, por exemplo, é desproporcional
e ilegal.
- Princípio
da Progressividade: O uso da força deve ser gradual
(verbalização, contenção física, uso de equipamentos menos letais, arma de
fogo como último recurso).
O uso abusivo da força ocorre quando esses princípios são
violados.
Exemplo Prático para o PP (Uso Legítimo):
Um preso tenta esfaquear outro com uma arma artesanal. O policial penal, após
ordenar a cessação da agressão (verbalização), utiliza spray de
pimenta ou bastão de contenção para desarmar e imobilizar o agressor.
Exemplo Prático para o PP (Uso Abusivo):
O preso é imobilizado, algemado e já não oferece resistência. O policial penal
continua a agredi-lo com socos no rosto "para dar uma lição".
- Análise: No
segundo caso, a força já não é mais necessária. Torna-se punitiva e
abusiva, podendo configurar lesão corporal, abuso de autoridade ou, a
depender da gravidade e do dolo, tortura.
A Ética e a Lei como Limites Inegociáveis
A função do policial penal é essencial para a segurança
pública e a administração da justiça. No entanto, a autoridade conferida pelo
Estado deve ser exercida com responsabilidade e dentro dos limites da lei.
O dever de tratamento digno é a regra; a tortura, os
maus-tratos e o uso abusivo da força são exceções criminosas que mancham a
imagem da instituição e afastam o Estado de Direito. O policial penal, ao
dominar a Lei nº 9.455/1997 e os princípios do uso da força, protege não apenas
os direitos dos custodiados, mas, fundamentalmente, sua própria integridade
profissional e sua liberdade. A legalidade e a ética são os maiores escudos do
policial penal contra a responsabilização penal e administrativa.
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