A Teia Normativa da Atuação
Policial Penal: Estatutos, Códigos e Normativas Internas
A Emenda Constitucional (EC) nº
104/2019 conferiu status constitucional à Polícia Penal,
inserindo-a no rol dos órgãos de segurança pública do Artigo 144 da
Constituição Federal. No entanto, a regulamentação detalhada da carreira, dos
direitos, deveres, e, crucialmente, do modus operandi diário
de cada policial penal não se esgota na Carta Magna, nem mesmo na Lei de
Execução Penal (LEP - Lei nº 7.210/1984), que é uma norma geral e federal.
A eficácia da atuação do policial
penal depende do conhecimento profundo do complexo e hierarquizado conjunto de
normas infraconstitucionais editadas no âmbito de cada ente federativo (Estados
e Distrito Federal). Esse arcabouço local é composto, primariamente, por três
pilares: o Estatuto dos Servidores Públicos local, o Código Penitenciário
Estadual específico e as Normativas Internas dos sistemas prisionais (Portarias
e Resoluções).
Compreender essa teia normativa é
fundamental para o policial penal que busca uma atuação técnica, segura e em
conformidade com a legalidade, evitando desvios funcionais e garantindo a
validade jurídica de seus atos.
1. O Estatuto dos Servidores
Públicos Estaduais: O Regime Jurídico Básico
O Estatuto dos Servidores
Públicos Civis de cada Estado ou do Distrito Federal é a lei que estabelece o
regime jurídico básico aplicável a todos os funcionários da administração
direta, autárquica e fundacional do respectivo ente, incluindo a Polícia Penal.
Embora a EC nº 104/2019 tenha
alçado a Polícia Penal a uma carreira policial com prerrogativas específicas,
ela permanece, em sua essência e regime jurídico, como uma carreira civil,
regida por este estatuto geral, até que uma Lei Orgânica específica da Polícia
Penal seja integralmente editada e implementada em cada local.
1.1. Direitos e Vantagens
Comuns
O estatuto geral define os
pilares da relação de trabalho do servidor com o Estado. Nele estão previstos
direitos e vantagens que o policial penal usufrui, como:
- Jornada de Trabalho: Definição da carga
horária semanal e, muitas vezes, as bases para o regime de plantão (ex:
12h de trabalho por 36h de descanso).
- Férias e Licenças: Normatização de
licenças-saúde, licença-maternidade/paternidade, licença-prêmio (onde
ainda vigente), e o direito anual a férias remuneradas.
- Vencimentos e Progressão: A estrutura
remuneratória básica, os adicionais por tempo de serviço (quinquênios,
anuênios), e as regras gerais de progressão na carreira.
- Aposentadoria: Embora a EC nº 103/2019
(Reforma da Previdência) tenha estabelecido regras nacionais para
policiais, o estatuto local define procedimentos e, em alguns casos,
regras transitórias remanescentes.
1.2. Deveres e o Regime
Disciplinar Geral
Crucialmente, o estatuto define
os deveres de todos os servidores e estabelece o regime disciplinar básico:
- Deveres: Obediência às ordens
superiores (exceto se manifestamente ilegais), assiduidade, pontualidade,
urbanidade, lealdade à instituição, entre outros.
- Penalidades: Tipificação de infrações
disciplinares genéricas e as penalidades aplicáveis: advertência,
suspensão, demissão, cassação de aposentadoria e disponibilidade.
- PAD (Processo Administrativo Disciplinar): O
rito processual que deve ser seguido para apurar faltas graves e garantir
o direito de defesa do servidor.
O policial penal deve conhecer o
estatuto para evitar a responsabilização administrativa por atos que, muitas
vezes, por desconhecimento, são praticados na rotina de trabalho. A aplicação
de uma penalidade disciplinar está diretamente ligada ao que o estatuto prevê.
2. O Código Penitenciário
Estadual: O Manual de Operação do Sistema
O Código Penitenciário Estadual
é, talvez, a legislação mais específica e diretamente aplicável à atividade-fim
do policial penal. Ele é uma lei estadual que regulamenta e complementa a Lei
de Execução Penal (LEP) federal, adaptando a execução penal à realidade e à
estrutura de cada sistema prisional local.
Enquanto a LEP fornece as bases
gerais, o Código Penitenciário Estadual entra nos detalhes operacionais e
procedimentais.
2.1. Detalhamento das Faltas
Disciplinares e Sanções
Um dos pontos de maior relevância
do Código Penitenciário Estadual é o detalhamento do regime disciplinar
dos custodiados. A LEP (Art. 50) define as faltas graves em âmbito
federal, mas os códigos estaduais frequentemente tipificam as faltas médias e
leves, estabelecendo um rol mais completo de condutas proibidas para os presos
e as respectivas sanções.
O policial penal utiliza o Código
Penitenciário para:
- Identificação de Faltas: Classificar
corretamente uma conduta do preso (ex: "posse de celular é falta
grave pela LEP, mas a briga sem lesão corporal é falta média pelo Código
Estadual X").
- Aplicação de Sanções: Conhecer quais
sanções podem ser aplicadas (isolamento em cela, suspensão de visitas,
etc.) e por quanto tempo.
2.2. Normas de Procedimento e
Segurança Intramuros
O Código Penitenciário estabelece
procedimentos cruciais para a segurança e a rotina do estabelecimento
prisional:
- Revistas e Vistorias: Regras sobre a
periodicidade e a forma de realização de revistas pessoais em presos e
visitantes, e vistorias em celas.
- Visitas: Disciplina as regras de visita
social, íntima e de advogados, que são de vital importância para a
manutenção do vínculo social do preso, mas também pontos sensíveis de
segurança.
- Assistências (Saúde, Educação, Trabalho): Detalha
como as assistências previstas na LEP serão operacionalizadas localmente.
- Uso da Força e Algemas: Pode conter
diretrizes específicas sobre o uso progressivo da força e a aplicação de
algemas dentro da unidade prisional, sempre em consonância com a Súmula
Vinculante nº 11 do STF.
O policial penal que domina o
Código Penitenciário Estadual age com autoridade e legalidade no controle da
massa carcerária e na gestão da segurança da unidade.
3. Normativas Internas:
Portarias, Resoluções e Ordens de Serviço
No topo da pirâmide está a
Constituição Federal, abaixo a LEP e o Código Penitenciário Estadual (leis em
sentido formal), e na base, mas com aplicação diária e imediata, estão as normativas
internas do próprio órgão gestor do sistema prisional (Secretaria de
Administração Penitenciária, por exemplo).
Essas normas (Portarias,
Resoluções, Instruções Normativas, Ordens de Serviço, Circulares) são atos
administrativos que detalham o "como fazer" em situações específicas
e mutáveis. Elas possuem poder de regulamentação interna e são
de cumprimento obrigatório para o corpo funcional.
3.1. O "Chão de
Fábrica" da Normatização
As normativas internas traduzem a
lei em procedimentos operacionais padrão (POPs). Exemplos práticos incluem:
- Procedimento de Inclusão/Exclusão: Detalhamento
da recepção de novos presos, revista corporal, cadastro de dados, entrega
de kit de higiene e uniforme.
- Regras de Movimentação: Como deve ser a
escolta interna do preso para o pátio de sol, refeitório, ou atendimento
médico.
- Acautelamento de Bens: Procedimentos
para o recebimento e guarda de pertences de presos e visitantes.
- Uso de Equipamentos: Regras sobre o uso
e manutenção de armamentos, body cams (câmeras corporais),
e equipamentos de contenção.
3.2. A Importância do
Conhecimento: Hierarquia e Legalidade
O policial penal deve seguir as
normativas internas, sob pena de responder disciplinarmente por desobediência.
No entanto, é fundamental compreender a hierarquia das normas: uma Portaria não
pode contrariar a LEP, o Código Penitenciário Estadual ou a Constituição
Federal.
Se uma normativa interna
determinar um procedimento manifestamente ilegal (ex: uma revista vexatória que
viole a dignidade da pessoa humana), o policial penal tem o dever de se opor a
ela, ou pelo menos, registrar formalmente o conflito, para resguardar sua
responsabilidade. A legalidade sempre prevalece.
Conclusão: A Importância do
Manual Jurídico Prático
A atuação do policial penal é uma
das mais complexas do serviço público brasileiro, exigindo um equilíbrio
constante entre segurança, disciplina e direitos humanos. A EC nº 104/2019 deu
o reconhecimento institucional necessário, mas a operação diária é regida por
uma densa rede de leis estaduais e normativas internas.
O conhecimento do Estatuto Geral
dos Servidores (direitos e deveres da carreira), do Código Penitenciário
Estadual (regras do sistema) e das Normativas Internas (procedimentos
operacionais) confere ao policial penal a autoridade, a segurança jurídica e a
profissionalismo necessários para desempenhar sua função de forma excelente e
legal. Este manual serve como bússola para navegar essa complexa teia
normativa.
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