segunda-feira, 1 de dezembro de 2025

A Teia Normativa da Atuação Policial Penal

 

A Teia Normativa da Atuação Policial Penal: Estatutos, Códigos e Normativas Internas

A Emenda Constitucional (EC) nº 104/2019 conferiu status constitucional à Polícia Penal, inserindo-a no rol dos órgãos de segurança pública do Artigo 144 da Constituição Federal. No entanto, a regulamentação detalhada da carreira, dos direitos, deveres, e, crucialmente, do modus operandi diário de cada policial penal não se esgota na Carta Magna, nem mesmo na Lei de Execução Penal (LEP - Lei nº 7.210/1984), que é uma norma geral e federal.

A eficácia da atuação do policial penal depende do conhecimento profundo do complexo e hierarquizado conjunto de normas infraconstitucionais editadas no âmbito de cada ente federativo (Estados e Distrito Federal). Esse arcabouço local é composto, primariamente, por três pilares: o Estatuto dos Servidores Públicos local, o Código Penitenciário Estadual específico e as Normativas Internas dos sistemas prisionais (Portarias e Resoluções).

Compreender essa teia normativa é fundamental para o policial penal que busca uma atuação técnica, segura e em conformidade com a legalidade, evitando desvios funcionais e garantindo a validade jurídica de seus atos.


1. O Estatuto dos Servidores Públicos Estaduais: O Regime Jurídico Básico

O Estatuto dos Servidores Públicos Civis de cada Estado ou do Distrito Federal é a lei que estabelece o regime jurídico básico aplicável a todos os funcionários da administração direta, autárquica e fundacional do respectivo ente, incluindo a Polícia Penal.

Embora a EC nº 104/2019 tenha alçado a Polícia Penal a uma carreira policial com prerrogativas específicas, ela permanece, em sua essência e regime jurídico, como uma carreira civil, regida por este estatuto geral, até que uma Lei Orgânica específica da Polícia Penal seja integralmente editada e implementada em cada local.

1.1. Direitos e Vantagens Comuns

O estatuto geral define os pilares da relação de trabalho do servidor com o Estado. Nele estão previstos direitos e vantagens que o policial penal usufrui, como:

  • Jornada de Trabalho: Definição da carga horária semanal e, muitas vezes, as bases para o regime de plantão (ex: 12h de trabalho por 36h de descanso).
  • Férias e Licenças: Normatização de licenças-saúde, licença-maternidade/paternidade, licença-prêmio (onde ainda vigente), e o direito anual a férias remuneradas.
  • Vencimentos e Progressão: A estrutura remuneratória básica, os adicionais por tempo de serviço (quinquênios, anuênios), e as regras gerais de progressão na carreira.
  • Aposentadoria: Embora a EC nº 103/2019 (Reforma da Previdência) tenha estabelecido regras nacionais para policiais, o estatuto local define procedimentos e, em alguns casos, regras transitórias remanescentes.

1.2. Deveres e o Regime Disciplinar Geral

Crucialmente, o estatuto define os deveres de todos os servidores e estabelece o regime disciplinar básico:

  • Deveres: Obediência às ordens superiores (exceto se manifestamente ilegais), assiduidade, pontualidade, urbanidade, lealdade à instituição, entre outros.
  • Penalidades: Tipificação de infrações disciplinares genéricas e as penalidades aplicáveis: advertência, suspensão, demissão, cassação de aposentadoria e disponibilidade.
  • PAD (Processo Administrativo Disciplinar): O rito processual que deve ser seguido para apurar faltas graves e garantir o direito de defesa do servidor.

O policial penal deve conhecer o estatuto para evitar a responsabilização administrativa por atos que, muitas vezes, por desconhecimento, são praticados na rotina de trabalho. A aplicação de uma penalidade disciplinar está diretamente ligada ao que o estatuto prevê.


2. O Código Penitenciário Estadual: O Manual de Operação do Sistema

O Código Penitenciário Estadual é, talvez, a legislação mais específica e diretamente aplicável à atividade-fim do policial penal. Ele é uma lei estadual que regulamenta e complementa a Lei de Execução Penal (LEP) federal, adaptando a execução penal à realidade e à estrutura de cada sistema prisional local.

Enquanto a LEP fornece as bases gerais, o Código Penitenciário Estadual entra nos detalhes operacionais e procedimentais.

2.1. Detalhamento das Faltas Disciplinares e Sanções

Um dos pontos de maior relevância do Código Penitenciário Estadual é o detalhamento do regime disciplinar dos custodiados. A LEP (Art. 50) define as faltas graves em âmbito federal, mas os códigos estaduais frequentemente tipificam as faltas médias e leves, estabelecendo um rol mais completo de condutas proibidas para os presos e as respectivas sanções.

O policial penal utiliza o Código Penitenciário para:

  • Identificação de Faltas: Classificar corretamente uma conduta do preso (ex: "posse de celular é falta grave pela LEP, mas a briga sem lesão corporal é falta média pelo Código Estadual X").
  • Aplicação de Sanções: Conhecer quais sanções podem ser aplicadas (isolamento em cela, suspensão de visitas, etc.) e por quanto tempo.

2.2. Normas de Procedimento e Segurança Intramuros

O Código Penitenciário estabelece procedimentos cruciais para a segurança e a rotina do estabelecimento prisional:

  • Revistas e Vistorias: Regras sobre a periodicidade e a forma de realização de revistas pessoais em presos e visitantes, e vistorias em celas.
  • Visitas: Disciplina as regras de visita social, íntima e de advogados, que são de vital importância para a manutenção do vínculo social do preso, mas também pontos sensíveis de segurança.
  • Assistências (Saúde, Educação, Trabalho): Detalha como as assistências previstas na LEP serão operacionalizadas localmente.
  • Uso da Força e Algemas: Pode conter diretrizes específicas sobre o uso progressivo da força e a aplicação de algemas dentro da unidade prisional, sempre em consonância com a Súmula Vinculante nº 11 do STF.

O policial penal que domina o Código Penitenciário Estadual age com autoridade e legalidade no controle da massa carcerária e na gestão da segurança da unidade.


3. Normativas Internas: Portarias, Resoluções e Ordens de Serviço

No topo da pirâmide está a Constituição Federal, abaixo a LEP e o Código Penitenciário Estadual (leis em sentido formal), e na base, mas com aplicação diária e imediata, estão as normativas internas do próprio órgão gestor do sistema prisional (Secretaria de Administração Penitenciária, por exemplo).

Essas normas (Portarias, Resoluções, Instruções Normativas, Ordens de Serviço, Circulares) são atos administrativos que detalham o "como fazer" em situações específicas e mutáveis. Elas possuem poder de regulamentação interna e são de cumprimento obrigatório para o corpo funcional.

3.1. O "Chão de Fábrica" da Normatização

As normativas internas traduzem a lei em procedimentos operacionais padrão (POPs). Exemplos práticos incluem:

  • Procedimento de Inclusão/Exclusão: Detalhamento da recepção de novos presos, revista corporal, cadastro de dados, entrega de kit de higiene e uniforme.
  • Regras de Movimentação: Como deve ser a escolta interna do preso para o pátio de sol, refeitório, ou atendimento médico.
  • Acautelamento de Bens: Procedimentos para o recebimento e guarda de pertences de presos e visitantes.
  • Uso de Equipamentos: Regras sobre o uso e manutenção de armamentos, body cams (câmeras corporais), e equipamentos de contenção.

3.2. A Importância do Conhecimento: Hierarquia e Legalidade

O policial penal deve seguir as normativas internas, sob pena de responder disciplinarmente por desobediência. No entanto, é fundamental compreender a hierarquia das normas: uma Portaria não pode contrariar a LEP, o Código Penitenciário Estadual ou a Constituição Federal.

Se uma normativa interna determinar um procedimento manifestamente ilegal (ex: uma revista vexatória que viole a dignidade da pessoa humana), o policial penal tem o dever de se opor a ela, ou pelo menos, registrar formalmente o conflito, para resguardar sua responsabilidade. A legalidade sempre prevalece.


Conclusão: A Importância do Manual Jurídico Prático

A atuação do policial penal é uma das mais complexas do serviço público brasileiro, exigindo um equilíbrio constante entre segurança, disciplina e direitos humanos. A EC nº 104/2019 deu o reconhecimento institucional necessário, mas a operação diária é regida por uma densa rede de leis estaduais e normativas internas.

O conhecimento do Estatuto Geral dos Servidores (direitos e deveres da carreira), do Código Penitenciário Estadual (regras do sistema) e das Normativas Internas (procedimentos operacionais) confere ao policial penal a autoridade, a segurança jurídica e a profissionalismo necessários para desempenhar sua função de forma excelente e legal. Este manual serve como bússola para navegar essa complexa teia normativa.

 "Manual Jurídico do Policial Penal" por Edson Moura

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