A CRONOLOGIA DO DEVER: A
PERCEPÇÃO TEMPORAL E O SACRIFÍCIO SILENCIOSO DO POLICIAL PENAL
Este capítulo do Manual Jurídico do Policial Penal (Volume 2) disseca um aspecto profundo e, muitas vezes, negligenciado da psicologia da profissão: a alteração da percepção temporal e a redefinição das prioridades pessoais frente ao dever ininterrupto de garantir a segurança pública no sistema prisional.
A vida em sociedade é estruturada por ciclos: dias da semana úteis, fins de semana de descanso e feriados de celebração. O Policial Penal, no entanto, opera em uma dimensão temporal distinta, regida pelo sistema de plantão, que é, por natureza, refratário a essa cronologia civil.
A percepção de que "todos os dias são iguais" não é um mero desabafo, mas um efeito colateral direto da natureza da custódia prisional. O sistema prisional opera 24 horas por dia, 7 dias por semana, 365 dias por ano. A rotina do plantão (24x48, 12x36 ou outras escalas) impõe uma uniformidade de procedimentos: a contagem de presos, a entrega de alimentação, a revista, o banho de sol. Esses rituais se repetem com uma precisão monótona, apagando as nuances que diferenciam uma terça-feira de um sábado para o cidadão comum.
Essa rotina circular gera uma "cegueira cronológica". O policial foca no plantão vigente e no próximo plantão de folga, e não na data cívica. O marco temporal deixa de ser "Natal" e passa a ser "Plantão Véspera de Natal".
A Solidão das Datas Comemorativas e a Distância Familiar
O conflito entre a vida profissional e a vida pessoal atinge seu ápice durante as datas comemorativas. Enquanto a sociedade celebra a união, o Policial Penal se encontra em um estado de dissociação, alheio à felicidade dos familiares.
No início da carreira, essa dissonância costuma ser fonte de angústia e frustração. A ausência no aniversário do filho, no Natal ou na virada do ano é um custo emocional elevado. No entanto, com a progressão da carreira e a consolidação da identidade profissional, ocorre uma mudança de paradigma. O foco migra da celebração pessoal para o "dever com os colegas".
A camaradagem e a lealdade de equipe (o "irmão de farda") tornam-se a nova família substituta no ambiente prisional. O plantão de Natal não é mais um sacrifício solitário, mas um dever compartilhado com a equipe que está na linha de frente. Esse senso de pertencimento e dever mútuo substitui a dor da ausência familiar pela força do compromisso profissional.
A família, por sua vez, compreende a natureza da profissão. O sofrimento, se existe, não é pela falta de amor, mas pela constatação de que o ente querido está em um ambiente hostil enquanto eles estão em segurança. Eles entendem a vocação, mas lamentam o preço a ser pago por essa escolha de vida.
A Percepção de Insensibilidade: Mecanismos de Defesa Emocional. A sociedade, que vive sob a cronologia cívica dos feriados e fins de semana, muitas vezes percebe o Policial Penal como insensível ou frio por não demonstrar sofrimento com essas ausências.
Essa aparente insensibilidade é, na verdade, um mecanismo de defesa psicológica. Se o policial sofresse intensamente a cada feriado trabalhado, a carga emocional se tornaria insustentável, levando ao burnout, à depressão ou a problemas de saúde mental que comprometem a segurança operacional. A "frieza" é, na verdade, um ajuste cognitivo que permite a manutenção do foco e do profissionalismo. O policial aprende a compartimentar a vida:
Essa forma de ver os dias passar tem uma "vantagem": evita o sofrimento agudo em momentos de grande apelo emocional coletivo, como a final da Copa do Mundo, o Réveillon ou o Carnaval. O policial se torna resiliente à frustração de perder eventos sociais, pois esses eventos deixaram de ser marcadores de tempo relevantes em sua vida.
A alteração da percepção temporal do Policial Penal é um elemento intrínseco e inevitável da carreira. É o preço invisível pago pelo serviço público essencial. Do ponto de vista jurídico e administrativo, a manutenção da sanidade mental do servidor diante dessa rotina exige políticas de apoio psicológico e o reconhecimento institucional desse sacrifício.
O dever do Policial Penal é garantir que o Estado de Direito prevaleça, 24 horas por dia, sem feriados ou pausas. A honra da profissão reside nesse compromisso inabalável com a segurança, mesmo que isso signifique perder a noção de que dia é hoje, em troca da garantia de que o sistema continue a funcionar amanhã.
Para que o texto alcance a profundidade necessária para o Volume 2 do Manual Jurídico do Policial Penal, adicionei uma seção específica sobre o impacto das convocações irregulares na saúde mental e na dinâmica operacional. Este trecho conecta o sacrifício vocacional à realidade administrativa muitas vezes negligente.
A Patologização da Folga: Convocações Irregulares e o Ciclo do Esgotamento
Se a alteração da percepção temporal já é um desafio intrínseco à profissão, ela é agravada quando a administração pública rompe o pacto de confiança com o servidor. Um fenômeno crítico no sistema penitenciário atual é a prática de Diretores de Unidades Prisionais que, diante de déficits de efetivo, recorrem a convocações compulsórias em dias de folga sem a devida contrapartida — seja ela o pagamento da DEJEP (Diária Especial por Jornada Extraordinária) ou a compensação de horas.
Quando o Estado exige o sacrifício do descanso sem a devida retribuição legal, o policial penal se vê diante de um dilema moral. O tempo de folga, que deveria ser o período de "ressincronização" com a família e com a própria saúde mental, passa a ser visto com ansiedade. A expectativa de um telefonema ou de uma mensagem de convocação transforma o lar em uma extensão da unidade prisional. Neste cenário, surge um fenômeno alarmante: a resistência passiva através de atestados médicos.
O policial que, por vocação, estaria disposto a cumprir seu dever, sente-se desvalorizado e injustiçado. O "fingir estar doente" para justificar a ausência em uma convocação irregular não é apenas uma falta funcional; é um sintoma de um sistema doente que empurra o servidor para a marginalidade administrativa como forma de autoproteção. Essa prática gera um ciclo vicioso:
A Pressão Administrativa: O Diretor, pressionado pela falta de pessoal, convoca o servidor na folga sem remunerá-lo.
O Ressentimento do Servidor: O policial, sentindo que seu tempo pessoal é tratado como mercadoria sem valor pelo Estado, adoece psicologicamente ou simula o adoecimento.
A Sobrecarga da Equipe: A ausência (justificada por atestado) sobrecarrega os colegas que estão no plantão, aumentando o risco de incidentes críticos, rebeliões e erros operacionais.
O Manual Jurídico do Policial Penal é enfático: o descanso do Policial Penal não é apenas um direito trabalhista, é um requisito de segurança pública. Um policial exausto, que trabalha sob o peso de convocações não remuneradas, tem sua percepção e seus reflexos comprometidos.
Juridicamente, a convocação sem
contrapartida configura enriquecimento ilícito do Estado e desvio de
finalidade. A institucionalização da DEJEP e de programas de parceria (conforme
discutido nos capítulos anteriores) são as únicas vias legais para suprir o
déficit de pessoal sem aniquilar a saúde mental do servidor. O atestado médico,
quando usado como refúgio contra o abuso administrativo, é o grito de socorro
de uma categoria que aceita perder o calendário, mas não aceita perder a
dignidade.
O Policial Penal é o guardião das chaves do Estado, mas ele não pode ser prisioneiro da própria função. A aceitação da rotina circular e o desapego às datas festivas são provas de resiliência e amor à farda. Entretanto, essa entrega exige respeito por parte da gestão. Para que o policial continue a olhar para os dias que passam com o foco no dever e não com o amargor da injustiça, o Estado deve garantir que o tempo de serviço seja honrado e o tempo de folga seja sagrado.
Este acréscimo serve para alertar gestores sobre os perigos da gestão por pressão e para amparar juridicamente o servidor que busca o equilíbrio entre a vida operacional e a integridade psíquica.
Edson Moura

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