O TABAGISMO NO SISTEMA PRISIONAL E A CONTRADIÇÃO
JURÍDICO-ADMINISTRATIVA
O Volume 2 deste manual dedica-se
a uma das questões mais ambíguas e complexas da rotina carcerária: a
convivência entre a proibição de substâncias e a permissividade do tabaco em
ambientes de custódia. No "campo de batalha silencioso" do cárcere, o
cigarro é frequentemente utilizado como uma moeda de troca e um
"estabilizador" de ânimos, mas a que custo jurídico e de saúde para o
Estado e para os seus servidores?
A Contradição das Substâncias: Álcool x Tabaco
Uma das primeiras perguntas que
surgem na gestão das unidades é a disparidade de tratamento entre o álcool e o
cigarro. Por que o álcool é terminantemente proibido e o cigarro é amplamente
tolerado?
A Proibição do Álcool: A
justificativa para a proibição do álcool é estritamente segurança e disciplina.
O álcool é uma substância desinibidora que altera o comportamento, podendo
potencializar a agressividade, diminuir o tempo de reação e julgamento, e
servir como estopim para motins, agressões contra servidores e conflitos entre
custodiados. Juridicamente, a posse de álcool ou substâncias que alterem a
consciência é considerada falta grave, pois compromete a ordem e a disciplina
interna.
A Permissividade do Cigarro: O
cigarro, por outro lado, é visto historicamente pela administração como um
"redutor de ansiedade". A justificativa para sua manutenção no
cárcere não é de saúde, mas de estratégia de contenção. Teme-se que a proibição
abrupta do tabaco em um ambiente já tensionado possa gerar crises de
abstinência coletiva e desestabilização das unidades prisionais. No entanto,
essa "paz social" comprada com nicotina gera uma contradição jurídica
direta com as normas de saúde pública.
A Unidade Prisional como Repartição Pública e a Legalidade do Fumar na
Cela
Um ponto nevrálgico desta
discussão é a natureza jurídica do estabelecimento penal. A unidade prisional
é, inquestionavelmente, uma repartição pública. Como tal, ela está sujeita à
Lei Federal nº 12.546/2011 (Lei Antifumo), que proíbe o uso de cigarros,
cigarrilhas, charutos, cachimbos ou qualquer outro produto fumígeno em recinto
coletivo fechado, público ou privado.
Pode-se fumar na cela? Sob a
ótica da legalidade estrita, não. A cela, embora seja a "residência"
temporária do preso para fins de intimidade, é um espaço de custódia estatal,
integrando um prédio público. Quando o Estado permite que se fume dentro das
celas, ele está ignorando a legislação federal e expondo tanto os fumantes
quanto os não fumantes a um ambiente insalubre.
Impactos na Saúde e a Oneração do Sistema
A permissividade do tabagismo no
cárcere não é inofensiva; ela é uma fonte de oneração direta do sistema de
saúde e da administração pública.
O ambiente carcerário já é
propício à proliferação de doenças respiratórias devido à ventilação precária e
ao confinamento. O uso do tabaco agrava quadros de bronquite crônica, enfisema
e câncer de pulmão.
É comum encontrarmos detentos com
doenças graves como tuberculose, pneumonia ou asma convivendo em celas
superlotadas com dezenas de outros detentos que fumam ininterruptamente.
Juridicamente, isso configura uma omissão estatal no dever de cuidado. O
Estado, ao manter um não fumante ou um doente respiratório em um ambiente
saturado de fumaça, viola o preceito constitucional da dignidade da pessoa
humana e o direito à saúde.
A conta dessa permissividade
chega através das escoltas médicas frequentes, do custo elevado de medicamentos
e das internações hospitalares que poderiam ser evitadas. Além disso, abre-se a
porta para ações de indenização contra o Estado por danos à integridade física
do custodiado que entrou saudável e saiu com doenças pulmonares crônicas.
Programas Antitabagismo e Suporte ao Combate ao Vício
Para resolver essa contradição, o
este Manual Jurídico propõe que a administração avance para além da simples
proibição, focando na transição e no suporte. Não se trata apenas de proibir,
mas de tratar o vício como uma questão de saúde pública dentro da execução
penal.
A implementação de programas
antitabagismo deve incluir o fornecimento de adesivos de nicotina, medicamentos
específicos e palestras motivacionais conduzidas por equipes de saúde. O
objetivo é oferecer ao custodiado uma saída para a dependência química que o
cigarro impõe.
Enquanto o tabagismo não for
erradicado, é imperativo que a gestão das unidades crie celas e pavilhões isolados
para fumantes e não fumantes. Essa medida visa proteger o direito dos não
fumantes a um ambiente livre de fumaça, minimizando os danos causados pelo fumo
passivo.
O Reflexo no Policial Penal: Saúde Ocupacional
Este debate não se limita aos
custodiados. Tudo o que foi discutido serve também para o Policial Penal.
O servidor que trabalha em alas
onde o fumo é permitido torna-se um fumante passivo compulsório. Durante
plantões de 12 ou 24 horas, o policial inala a fumaça proveniente das galerias
e celas, o que representa um risco ocupacional grave. A exposição contínua pode
levar o servidor a desenvolver as mesmas doenças pulmonares dos detentos,
resultando em afastamentos médicos, redução da capacidade laborativa e queda na
qualidade de vida.
O Foco na Saúde do Policial Penal
representa uma mudança de paradigma essencial na gestão do sistema prisional
moderno. Historicamente, as políticas de saúde em ambientes de custódia
concentraram-se quase exclusivamente na população carcerária, negligenciando o
fato de que o servidor público — o Policial Penal — divide o mesmo ecossistema
insalubre, enfrentando riscos ocupacionais que extrapolam a segurança física e
atingem diretamente sua integridade biológica e psicológica.
Um dos pontos mais críticos dessa
exposição é o tabagismo. No ambiente fechado das galerias e pavilhões, o
Policial Penal frequentemente torna-se um "fumante passivo
compulsório". Durante plantões exaustivos, o servidor inala continuamente
a fumaça proveniente das celas, o que configura um risco invisível, mas
devastador. A exposição prolongada a substâncias tóxicas do tabaco está
diretamente ligada ao desenvolvimento de patologias respiratórias graves, como
a Doença Pulmonar Obstrutiva Crônica (DPOC), enfisemas e diversos tipos de
câncer. Portanto, lutar por unidades prisionais livres de tabaco não é apenas
uma questão de disciplina para o custodiado, mas uma medida de segurança do
trabalho para o policial.
Para reverter esse quadro, é
imperativo que o Estado inclua o Policial Penal de forma prioritária em
programas de saúde ocupacional. Esses programas não podem ser meramente
protocolares; devem oferecer suporte real e tangível. Isso inclui o acesso
facilitado a consultas com pneumologistas e cardiologistas, exames periódicos
de função pulmonar e, sobretudo, o mesmo suporte farmacológico oferecido aos
que buscam cessar o vício. Se há distribuição de adesivos de nicotina, gomas de
mascar terapêuticas ou medicamentos específicos para os custodiados, esses
mesmos recursos devem estar disponíveis, sem burocracia, para o servidor que
deseja abandonar o tabagismo ou mitigar os danos da exposição passiva.
Além do suporte medicamentoso, a
dimensão educativa e psicológica é vital. Palestras motivacionais, grupos de
apoio e acompanhamento psicológico focado no manejo do estresse são
fundamentais. O Policial Penal lida diariamente com uma carga de tensão
elevadíssima; muitas vezes, o cigarro surge como uma válvula de escape ilusória
para a ansiedade do cárcere. Combater essa percepção exige uma abordagem humanizada
que trate o policial como um indivíduo cuja saúde é o ativo mais precioso da
instituição.
O reflexo direto de um foco
rigoroso na saúde do servidor é a redução drástica dos afastamentos médicos e
das licenças para tratamento de saúde. Um corpo policial saudável é mais
eficiente, possui maior tempo de reação, melhor capacidade de julgamento e uma
qualidade de vida superior fora do horário de serviço. O Estado, ao investir na
prevenção e no suporte à saúde do Policial Penal, economiza recursos públicos que
seriam gastos com substituições de pessoal e tratamentos de alta complexidade.
Em suma, a saúde do Policial
Penal deve deixar de ser um tópico secundário para se tornar o pilar central da
administração penitenciária. Garantir que o servidor não adoeça no exercício de
sua função é um dever jurídico e moral do Estado. Afinal, o maior escudo de um
policial é o seu conhecimento jurídico, mas sua maior ferramenta de trabalho é
a sua própria vida e saúde preservadas.
Portanto, a luta por um ambiente
livre de tabaco nas unidades prisionais é também uma luta pela segurança e
saúde do servidor. O Policial Penal deve estar ciente de que a
"flexibilidade" em permitir o fumo em locais proibidos afeta
diretamente seus próprios pulmões.
Edson Moura
.png)
Nenhum comentário:
Postar um comentário