A atividade do policial penal é,
por sua natureza, paradoxal. Ela se situa na intersecção entre a necessidade
imperativa de segurança pública, custódia e disciplina, e o dever inalienável
do Estado de garantir os direitos fundamentais da pessoa privada de liberdade.
O ambiente prisional, por vezes tensionado pela superlotação e pela
complexidade das relações internas, exige do profissional de segurança um conhecimento
jurídico e ético que vá além da mera aplicação da força e da manutenção da
ordem.
A Emenda Constitucional nº
104/2019, que elevou a Polícia Penal ao status de órgão de
segurança pública (Art. 144, CF), reforçou a responsabilidade do agente em atuar
em conformidade com a Constituição Federal e os tratados internacionais de
direitos humanos dos quais o Brasil é signatário.
Este capítulo do manual jurídico
tem como objetivo explorar o papel dos direitos humanos no contexto da execução
penal, focando especificamente nas Regras Mínimas das Nações Unidas
para o Tratamento de Presos, globalmente conhecidas como as Regras
de Mandela (Resolução A/RES/70/175 da Assembleia Geral da ONU, de
2015), que servem como o principal farol orientador da conduta do policial
penal em âmbito internacional.
1. O Princípio da Dignidade da
Pessoa Humana: O Norte Constitucional
A base de toda a atuação do
Estado, inclusive no exercício do poder punitivo, é o Princípio da
Dignidade da Pessoa Humana (Art. 1º, III, CF/88). A privação de
liberdade restringe o direito de ir e vir, mas não aniquila os demais direitos
civis, políticos e sociais do indivíduo. O preso continua sendo uma pessoa, um
cidadão, cujos direitos e garantias devem ser resguardados.
A Lei de Execução Penal (LEP), em
seu Artigo 3º, reforça esse preceito:
"Ao condenado e ao internado
serão assegurados todos os direitos não atingidos pela sentença ou pela
lei."
Isso significa que o policial
penal deve atuar como um garantidor de direitos, e não apenas como um agente de
custódia. O respeito aos direitos humanos não é um favor ou uma concessão, mas
um dever legal e ético, cuja violação implica em responsabilização
administrativa, cível e penal (como o crime de tortura ou abuso de autoridade).
2. As Regras de Mandela: O
Padrão Global de Tratamento de Presos
As Regras de Mandela são a
atualização das Regras Mínimas para o Tratamento de Presos, adotadas pela
primeira vez em 1955. Elas foram revisadas e rebatizadas em homenagem a Nelson
Mandela, que passou 27 anos como prisioneiro político na África do Sul. Elas
são um conjunto de diretrizes universalmente aceitas que estabelecem o que é
considerado boas práticas na administração prisional e no tratamento de pessoas
privadas de liberdade.
Embora não sejam um tratado internacional
com força de lei direta, elas são consideradas soft law e
possuem grande peso moral e interpretativo, sendo frequentemente citadas em
decisões de tribunais nacionais e internacionais de direitos humanos, como a
Corte Interamericana de Direitos Humanos e o Supremo Tribunal Federal (STF) do
Brasil.
Para o policial penal, as Regras
de Mandela são um manual prático de conduta que operacionaliza o princípio da
dignidade humana no dia a dia do cárcere.
2.1. Princípios Fundamentais
(Regras 1 a 5)
As regras iniciais estabelecem o
alicerce:
- Regra 1 (Dignidade e Respeito): Todos os presos devem ser tratados com o devido respeito à sua dignidade e valor intrínseco como seres humanos. Nenhum preso pode ser submetido a tortura ou a tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes.
- Exemplo Prático para o PP: Usar linguagem respeitosa ("senhor", "você"), evitar apelidos pejorativos, e jamais agredir fisicamente ou psicologicamente um preso, mesmo em situações de estresse.
- Regra 3 (Não Discriminação): As regras
devem ser aplicadas imparcialmente, sem discriminação por raça, cor, sexo,
língua, religião, opinião política, origem nacional ou social,
propriedade, nascimento ou qualquer outro status.
- Exemplo Prático para o PP: Garantir
que todos os presos tenham acesso igualitário ao pátio de sol, às
refeições, ao atendimento médico ou ao banho de sol, independentemente de
sua origem, religião ou facção.
2.2. Alojamento e Condições
Sanitárias (Regras 12 a 25)
Estas regras focam nas condições
materiais de custódia, que impactam diretamente a saúde e a dignidade.
- Regra 13 (Alojamentos Adequados): Os alojamentos devem atender a todos os requisitos de saúde, em particular no que diz respeito ao volume de ar, área mínima de pavimento, iluminação, aquecimento e ventilação.
- Exemplo Prático para o PP: Comunicar imediatamente à chefia problemas de superlotação que comprometam a saúde (ex: falta de espaço mínimo para dormir) ou falhas estruturais (ex: infiltrações, falta de luz).
- Regra 15 (Higiene Pessoal): Os presos devem ser mantidos em condições de asseio, sendo-lhes fornecida água e produtos de higiene (sabonete, escova de dentes) suficientes para a manutenção de sua saúde e limpeza.
- Exemplo Prático para o PP: Assegurar a
distribuição regular dos kits de higiene previstos na LEP e permitir o
acesso diário ao banho, mesmo em dias de crise ou restrição de
movimentação.
2.3. Assistência Médica
(Regras 25 a 35)
A assistência à saúde é um
direito fundamental e um dever do Estado, que deve ser garantido pelo policial
penal na ponta da execução.
- Regra 27 (Acesso a Cuidados Médicos): Todo estabelecimento deve ter pelo menos um profissional de saúde qualificado (médico ou enfermeiro) e garantir o acesso diário a atendimento de urgência e emergência.
- Exemplo Prático para o PP: Acionar imediatamente a equipe de saúde prisional ou o SAMU/Corpo de Bombeiros em casos de emergência médica, sem protelação, e garantir a escolta para atendimento externo quando necessário.
- Regra 33 (Restrições de Uso de Algemas e Instrumentos de Coerção): O uso de algemas e outros instrumentos de coerção deve ser excepcional, como medida de precaução contra a fuga, para a segurança do preso ou de terceiros, e sempre de forma temporária.
- Exemplo Prático para o PP: Seguir
rigorosamente a Súmula Vinculante nº 11 do STF e as regras internas que
limitam o uso de algemas apenas durante o transporte ou em situações de
iminente perigo, nunca como forma de punição.
2.4. Disciplina e Sanções
(Regras 36 a 55)
As regras de Mandela não afastam
a necessidade de disciplina, mas a regulam rigidamente para evitar abusos.
- Regra 41 (Sanções Legais): Nenhuma sanção disciplinar pode ser imposta sem previsão legal (Princípio da Legalidade).
- Exemplo Prático para o PP: O policial penal deve basear a aplicação de faltas disciplinares exclusivamente na LEP federal e no Código Penitenciário Estadual, e não em regras informais da unidade ou da equipe de plantão.
- Regra 43 (Isolamento Prolongado): As regras proíbem o isolamento celular por períodos prolongados (acima de 15 dias consecutivos) e em condições de escuridão total ou isolamento sensorial.
- Exemplo Prático para o PP: Respeitar
os prazos e condições do Regime Disciplinar Diferenciado (RDD) ou do
isolamento preventivo, garantindo os direitos mínimos do preso durante
esse período, como o direito à defesa e ao banho de sol.
2.5. Contato com o Mundo
Exterior (Regras 58 a 63)
A ressocialização depende da
manutenção dos laços sociais e familiares.
- Regra 58 (Visitas Familiares): Os presos devem ter comunicação regular, sob supervisão necessária, com suas famílias e amigos por correspondência e por meio de visitas.
- Exemplo Prático para o PP: Facilitar e
zelar pela segurança das visitas sociais e íntimas, tratando os
visitantes com urbanidade e garantindo que o direito de visita seja
exercido plenamente, salvo em casos de sanção disciplinar ou segurança.
O Policial Penal
como Agente de Cidadania
O conhecimento e a aplicação das
Regras de Mandela e dos princípios de direitos humanos são a linha divisória
entre a atuação profissional, técnica e legal, e a atuação arbitrária e
abusiva.
O policial penal, ao zelar pelo
respeito à dignidade humana dos custodiados, não está sendo
"complacente"; está, na verdade, cumprindo seu dever constitucional e
garantindo a legitimidade da intervenção estatal. Em um ambiente de alta
complexidade como o sistema prisional, a adesão a padrões éticos e legais
elevados é a maior garantia da segurança do próprio servidor e da eficácia do
sistema de justiça criminal. A Polícia Penal, como órgão de segurança pública,
tem a missão de aplicar a lei e resguardar a dignidade, mesmo nos locais onde a
liberdade foi justamente cerceada.
Edson Moura

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