O Colapso da Empatia na Gestão
Prisional
O sistema prisional é, por
definição, um ambiente de tensões permanentes. Dentro das muralhas, a balança
entre a ordem e o caos é mantida por um fio invisível chamado "moral da
tropa". No entanto, neste tópico do Manual Jurídico do Policial Penal,
vamos analisar como esse fio está sendo corroído por um fenômeno administrativo
e sociológico alarmante: a desumanização do Policial Penal por aqueles que
deveriam ser seus primeiros defensores — seus próprios Diretores de Unidade.
A liderança em ambientes de alto
risco exige mais do que competência técnica ou conhecimento do regulamento
disciplinar; exige legitimidade. E a legitimidade nasce do reconhecimento
mútuo. Quando um gestor ascende ao cargo de comando e rompe o cordão umbilical
que o ligava à base, ele instaura um regime de "amnésia de classe"
que transforma colegas de farda em meros recursos operacionais descartáveis.
A "amnésia de classe"
no serviço público, especificamente nas carreiras policiais, é um fenômeno
intrigante. Como pode um indivíduo que passou anos enfrentando a insalubridade,
o perigo iminente e a pressão psicológica dos pavilhões, das muralhas ou das
escoltas, esquecer-se de tais sensações ao assumir uma cadeira estofada?
Sociologicamente, isso ocorre
devido à burocratização da empatia. Ao assumir a diretoria, o foco do gestor
muda do "produzir" para o "entregar resultados" à
Secretaria. A pressão vinda de cima — metas de segurança, manutenção da ordem,
contenção de gastos — passa a ser o único norte. Nesse processo, o Diretor
passa a ver a unidade não como um conjunto de seres humanos, mas como uma
máquina de engrenagens. Se uma peça (o policial) range por cansaço, a solução
burocrática não é o óleo do descanso, mas o aperto da pressão administrativa.
O esquecimento da base não é
apenas uma falha de memória; é uma escolha política de gestão. É mais fácil
assinar uma convocação compulsória do que lutar perante os órgãos superiores
por melhores condições de trabalho ou novos concursos públicos.
A gestão moderna frequentemente
cai na armadilha do produtivismo cego. No sistema prisional, isso se traduz na
obsessão pelo preenchimento de postos de trabalho a qualquer custo. Quando o
Diretor olha para o quadro de pessoal e vê apenas "vagas" e
"nomes", ele ignora as necessidades biológicas e emocionais que
sustentam esses nomes.
Um policial penal não é uma
constante matemática. Ele é uma variável influenciada pelo sono, pela
alimentação e, crucialmente, pela vida familiar. Este artigo destaca o
"amargor de passar o Natal longe dos pais, filhos, netos e cônjuges".
Essa não é uma reclamação sentimentalista, mas uma constatação de que o
trabalho policial consome o que o ser humano tem de mais sagrado: seu tempo de
vida.
Quando a gestão ignora o
esgotamento físico do subordinado e impõe o sacrifício da folga como regra, e
não como exceção de extrema urgência, ela pratica uma violência institucional.
O policial passa a sentir que sua vida privada não tem valor para a instituição.
O resultado é a erosão da honra e o surgimento do sentimento de exploração.
A hierarquia e a disciplina são
os pilares das forças de segurança. Contudo, elas não devem ser confundidas com
autoritarismo ou indiferença. O líder de verdade lidera pelo exemplo e pelo
suporte. No ambiente carcerário, onde o erro de um pode custar a vida de
muitos, a confiança no comando é o que garante que a ordem será cumprida com
excelência.
Quando um Diretor convoca um
subordinado na folga "sem qualquer remorso ou contrapartida", ele
rompe o contrato moral da tropa. A liderança administrativa foca no papel; a
liderança de comando foca nas pessoas. Um policial exausto é um perigo para si
mesmo, para seus parceiros e para a segurança da unidade. O "líder"
que mói a saúde mental de seus pares para apresentar números bonitos ao sistema
está, na verdade, semeando uma tragédia anunciada.
Um dos pontos mais polêmicos e
necessários do debate proposto é a interpretação do absenteísmo — o uso de
atestados médicos — como uma ferramenta de resistência. Tradicionalmente, a
gestão vê o atestado como "má-fé". No entanto, sob a ótica da
dignidade humana, ele muitas vezes é a única barreira legal contra o arbítrio.
Se a instituição não respeita o
direito ao descanso e à desconexão, o corpo do policial eventualmente cobrará a
conta. O esgotamento (Burnout) nas fileiras da Polícia Penal é uma realidade
estatística. Quando o diálogo é substituído por convocações arbitrárias, o
servidor utiliza o que lhe resta: o respaldo médico para garantir sua
sobrevivência psíquica.
Não se trata de apologia à falta
ao trabalho, mas de uma análise de causa e efeito. O desrespeito institucional
é o combustível do absenteísmo. Se o comando não oferece empatia, a base
responde com o distanciamento legal. É um "caos silencioso" que
desestrutura a unidade e sobrecarrega aqueles que permanecem, criando um ciclo
vicioso de adoecimento.
O Papel do Manual Jurídico do
Policial Penal
Este segundo volume do Manual
Jurídico do Policial Penal serve como um farol para a categoria. Ele reforça
que a eficiência do sistema penitenciário não é medida por quantas horas extras
foram forçadas, mas pela qualidade do serviço prestado por servidores
valorizados.
O Direito, aqui, não é apenas um
conjunto de leis frias, mas uma ferramenta de proteção da humanidade do
servidor. A "tranca ou as ruas" exigem um profissional em pleno gozo
de suas faculdades mentais. O Manual deixa claro que a segurança pública é
indissociável da saúde do agente público. Gerir com base na legalidade estrita,
ignorando a razoabilidade e a proporcionalidade, é uma falha técnica e moral.
Para reverter esse quadro, é
necessário que as Escolas de Gestão Prisional foquem na formação de líderes,
não apenas de chefes administrativos. É preciso resgatar a "memória da
grade".
Gestão de Pessoas vs. Gestão
de Postos: É urgente que o RH das unidades entenda a dinâmica das
escalas como um fator de saúde pública. A Polícia Penal é estatisticamente uma
das profissões com maior índice de suicídio e transtornos de ansiedade.
Quando o RH impõe convocações em
folgas sem critérios de saúde, ele acelera o esgotamento mental do servidor. Tratar
a escala como saúde pública significa planejar períodos de
"descompressão" obrigatórios. O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e
órgãos de direitos humanos têm enfatizado que a integridade do sistema depende
da integridade mental de quem o opera.
Transparência e Contrapartida: Se
a convocação é necessária por falta de efetivo, deve haver um reconhecimento,
seja financeiro, seja em folgas compensatórias justas, e nunca através da imposição
desmedida. Muitos estados já regulamentam a prestação de serviços em períodos
de folga através de leis específicas que criam gratificações por trabalho em
tempo integral ou diárias operacionais. Por exemplo, em São Paulo, a Lei
Complementar que instituiu a DEJEP (Diária Especial por Jornada Extraordinária
de Trabalho Penitenciário) regulamenta esse pagamento.
O próprio STF alterou seu
entendimento anterior e passou a permitir a acumulação do subsídio com o
pagamento de horas extras, abrindo precedentes favoráveis para a categoria em
ações judiciais.
A "imposição desmedida"
de convocações entra em conflito direto com o princípio da razoabilidade e com
a proteção à saúde e ao descanso do servidor. A falta de efetivo, embora seja
um problema crônico do sistema prisional, é um ônus da administração pública,
não do servidor individual.
Canais de Diálogo: O
Diretor deve ser acessível. A distância entre o gabinete do chefe de departamento
e o pavilhão e principalmente os muros e a escolta, não pode ser maior que o
respeito entre os colegas de farda. Na muralha o tempo passa devagar, a
exposição às intempéries é constante e o sentimento de "esquecimento"
pelo comando é comum. Na Escolta o risco é iminente e a responsabilidade é
máxima, muitas vezes com recursos limitados.
Quando o Diretor sai do gabinete
e vai até esses postos, ele não está apenas fiscalizando; ele está validando a
importância daquela função. Um comando que não pisa no local onde o risco
acontece perde a autoridade moral para exigir sacrifícios.
A distância física entre o
ar-condicionado da diretoria e o calor do pavilhão, dos muros e das ruas é de
poucos metros, mas a distância emocional pode ser quilométrica. A sala do Chefe
muitas vezes torna-se uma bolha de planilhas e burocracia. Mas é na carceragem,
nos muros e escoltas que a "vida real" do sistema acontece.
Se o Diretor não é acessível, ele
deixa de receber o feedback real da tropa. Ele passa a decidir com base em papéis,
ignorando que aquela "escala ajustada" no computador significa, na
prática, um policial em jejum ou sem descanso adequado para a escolta do dia
seguinte.
O sistema prisional brasileiro
atravessa um momento de transição com a regulamentação da Polícia Penal. No
entanto, de nada adianta o reconhecimento constitucional se, internamente, as
práticas de gestão continuarem ancoradas no desprezo pelo servidor ou por
frases como: “sempre foi assim”.
o Diretor, seja de Núcleo, de
Centro ou Geral, que esquece sua origem,
condena sua unidade ao fracasso. A verdadeira força de uma força de segurança
não está nas armas ou nas muralhas, mas na integridade e na motivação de seus
homens e mulheres. Gerir exige técnica, mas manter o sistema em pé exige
humanidade. Que o "Manual Jurídico" seja lido não apenas como regra,
mas como um manifesto pela dignidade de quem dedica a vida a manter a sociedade
segura, muitas vezes à custa da própria paz.
Se você Policial Penal deseja
mais informações sobre direitos e diretrizes na gestão pública e penitenciária,
consulte o Portal do Conselho Nacional de Justiça ou a legislação
vigente no Portal da Legislação do Planalto.
Edson Moura

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