Sindicâncias e Processos
Administrativos Disciplinares (PAD): Direitos de Defesa do Servidor Policial
Penal e Trâmites
A atuação do Policial Penal,
embora pautada pela legalidade e pelo profissionalismo, não está isenta de
escrutínio. A complexidade do ambiente prisional e a natureza coercitiva da
função podem levar a situações que demandam a apuração de condutas, seja por
denúncias de presos, visitantes, ou por observações da própria chefia. O
instrumento utilizado pelo Estado para essa apuração é o Direito Administrativo
Disciplinar, materializado em dois procedimentos principais: a Sindicância e o
Processo Administrativo Disciplinar (PAD).
A Emenda Constitucional nº
104/2019, que inseriu a Polícia Penal no rol dos órgãos de segurança pública,
não alterou o regime jurídico dos servidores (que permanece civil), mas
reforçou a necessidade de transparência e rigor na apuração de desvios. O
conhecimento dos trâmites disciplinares é vital para que o policial penal, se
um dia for alvo de uma apuração, possa exercer plenamente seu direito de
defesa, garantido pela Constituição Federal.
Este capítulo do manual jurídico
vai apresentar os trâmites da Sindicância e do PAD, os direitos e garantias do
servidor Policial Penal e ilustrar com exemplos práticos e julgados dos
Tribunais Superiores (STF e STJ).
1. O Poder Disciplinar do
Estado e a Finalidade da Apuração
O Estado possui o "poder
disciplinar", que é a capacidade de fiscalizar a conduta de seus
servidores e aplicar sanções em caso de descumprimento dos deveres funcionais
ou violação das proibições previstas no Estatuto dos Servidores Públicos (Lei
Estadual de São Paulo, por exemplo).
A finalidade da sindicância e do
PAD não é punir arbitrariamente, mas sim garantir a moralidade, a eficiência e
a legalidade da administração pública. A punição é a consequência da
comprovação de uma falta grave, dentro de um rito que respeita as garantias
constitucionais.
2. A Sindicância: Instrumento
Preliminar de Apuração
A sindicância é um procedimento
preliminar e simplificado de investigação. Não é, em si, um processo punitivo,
mas uma fase que visa coletar indícios de autoria e materialidade de uma
possível infração disciplinar.
2.1. Tipos de Sindicância
A doutrina e a jurisprudência
distinguem três tipos de sindicância:
- Sindicância Investigativa ou Preparatória: A
mais comum. Seu objetivo é apenas apurar a ocorrência de uma
irregularidade e identificar o(s) autor(es) para decidir se há elementos
suficientes para a instauração de um PAD. Seus resultados podem ser:
arquivamento, instauração de PAD, ou, se a falta for leve e a legislação
local permitir, a aplicação direta de uma penalidade de advertência ou
suspensão de até 30 dias (a depender da legislação estadual).
- Sindicância Punitiva: Aplicável em
alguns Estados para faltas leves, onde a penalidade de advertência ou
suspensão (até 30 dias) pode ser aplicada diretamente, desde que garantido
o direito de defesa do servidor.
- Sindicância Patrimonial: Focada na
apuração da evolução patrimonial incompatível com a renda do servidor
(embora isso geralmente demande um PAD).
2.2. O Trâmite Simplificado
A sindicância é conduzida por uma
comissão de servidores ou por uma autoridade sindicante designada. O rito é
menos formal que o PAD.
Exemplo Prático (Sindicância
Investigativa):
A chefia de plantão recebe uma
denúncia anônima de que um policial penal está faltando ao serviço por escala,
o que é proibido pelo regimento interno, sem a devida compensação ou desconto.
A autoridade competente instaura uma sindicância para apurar a veracidade dos
fatos. A comissão ouve o denunciante (se identificado), o Policial Penal em
questão e verifica as folhas de ponto. Se os indícios se confirmarem, a Sindicância
recomenda a instauração de um PAD para aprofundar a apuração da falta grave de
inassiduidade.
3. O Processo Administrativo
Disciplinar (PAD): O Rito Formal
O PAD é o instrumento formal e
obrigatório para a apuração de faltas disciplinares graves, cuja penalidade
possa resultar em suspensão superior a 30 dias, demissão, ou cassação de
aposentadoria. Ele é regido pelos princípios constitucionais do contraditório e
da ampla defesa (Art. 5º, LV, CF).
3.1. Fases do PAD
O PAD segue um rito trifásico
estabelecido pela maioria dos estatutos de servidores:
a) Instauração
Inicia-se com a publicação da portaria
que designa a comissão processante (composta por três servidores estáveis, de
nível hierárquico igual ou superior ao do acusado) e delimita os fatos a serem
apurados.
b) Inquérito
É a fase principal e probatória,
dividida em três subfases:
- Instrução: A produção de provas.
Oitivas de testemunhas, interrogatório do acusado, perícias, juntada de
documentos, etc.
- Defesa (ou Defesa Prévia): Após a
instrução, o servidor é citado para apresentar sua defesa escrita, por
meio de advogado. É o momento de rebater as acusações e apresentar
contraprovas.
- Relatório: A comissão elabora um
relatório conclusivo, opinando pela inocência (absolvição) ou pela
culpabilidade do servidor, e sugerindo a penalidade cabível.
c) Julgamento
A autoridade competente (o
Secretário de Administração Penitenciária, em São Paulo) analisa o relatório da
comissão e profere a decisão final, que pode acatar o relatório ou,
motivadamente, divergir dele (agravando, abrandando ou isentando a pena).
3.2. Direitos e Garantias do
Policial Penal no PAD
A Constituição Federal e a
legislação garantem ao servidor amplos direitos de defesa durante o PAD:
- Contraditório e Ampla Defesa: O direito
de ser notificado de todas as fases do processo, de ter acesso a todos os
autos, de produzir provas, de inquirir testemunhas e de ser defendido por
advogado. A ausência de defesa técnica (advogado) no PAD não gera por si
só a nulidade absoluta do processo, conforme Súmula Vinculante nº 5
do STF.
A Súmula Vinculante nº 5 do
Supremo Tribunal Federal (STF) possui a seguinte redação:
"A falta de defesa técnica
por advogado no processo administrativo disciplinar não ofende a
Constituição."
O que isso significa?
Em termos simples, o STF firmou o
entendimento de que a presença de um advogado constituído ou de um defensor
dativo não é obrigatória para a validade de um Processo Administrativo
Disciplinar (PAD). A ausência de defesa técnica (advogado) não gera, por si só,
a nulidade do processo administrativo disciplinar.
Contexto e Justificativa
Antes da edição desta súmula em
2008, havia divergência nos tribunais
sobre a necessidade de advogado no PAD. O Superior Tribunal de Justiça (STJ),
por exemplo, entendia que a presença do advogado era obrigatória, pois a ampla
defesa e o contraditório seriam prejudicados sem a representação técnica.
No entanto, o STF, ao julgar o
Recurso Extraordinário (RE) nº 434.059, que deu origem à súmula, entendeu que:
Ampla Defesa: O direito à ampla
defesa é garantido pela possibilidade de o servidor apresentar seus argumentos,
produzir provas, e ter acesso aos autos do processo, mesmo sem a assistência de
um advogado.
Faculdade, não Obrigatoriedade: A
Lei nº 8.112/90 (Estatuto dos Servidores Públicos Federais, que serve de base
para muitos estatutos estaduais) prevê a possibilidade de o servidor ser
assistido por advogado, mas não impõe a obrigatoriedade, sendo uma faculdade do
interessado.
Segurança Jurídica: A edição da
súmula visava pacificar o entendimento e evitar a anulação em massa de milhares
de processos administrativos disciplinares que já haviam sido concluídos sem a
presença de um advogado.
Posição Atual
A Súmula Vinculante nº 5 continua
em vigor e é de observância obrigatória por todos os órgãos do Poder Judiciário
e da Administração Pública. Portanto, em um PAD, o servidor público tem o
direito de contratar um advogado para sua defesa, mas, se optar por não
fazê-lo, o processo continua válido, desde que os demais direitos de defesa
(como o acesso aos autos e a possibilidade de se manifestar) sejam respeitados.
- Presunção de Inocência: O servidor é
presumido inocente até a condenação final pela autoridade julgadora.
- Provas Lícitas: Apenas provas obtidas
por meios lícitos podem ser utilizadas (ex: gravação ambiental ilegal sem
autorização judicial não pode ser usada).
- Imparcialidade: A comissão processante
deve ser imparcial e livre de suspeição ou impedimento.
Exemplo Prático (PAD):
Um policial penal é acusado de
agredir um preso (falta grave e crime). A autoridade instaura o PAD. A comissão
ouve o preso, as testemunhas (outros presos e agentes), requisita imagens das
câmeras de segurança e ouve o acusado (interrogatório). O advogado do Policial
Penal tem acesso a tudo e, na defesa, apresenta um laudo médico que atesta que
o preso já tinha as lesões antes do incidente, e questiona a credibilidade das
testemunhas do detento. A comissão, analisando as provas, conclui pela
inocência por falta de provas robustas e recomenda a absolvição.
4. Exemplos de Julgados dos
Tribunais Superiores (STF e STJ)
A jurisprudência dos tribunais
superiores é rica em casos que reforçam as garantias dos servidores públicos em
processos disciplinares.
4.1. A Necessidade de Defesa
Técnica no PAD
O STF consolidou o entendimento
de que a defesa técnica por advogado é dispensável no PAD, sob pena de
nulidade.
[Súmula Vinculante nº 5 do
STF]: "A falta de defesa técnica por advogado no processo
administrativo disciplinar não ofende a Constituição."
Aplicação: Se o
policial penal não tiver um advogado ou se a instituição não nomear um defensor
dativo em caso de ausência, todo o processo é não é nulo.
4.2. O Contraditório e a Ampla
Defesa em Todas as Fases
O STJ tem decisões que reforçam a
necessidade de notificação do servidor em todos os atos do PAD.
Julgado STJ (MS 13.916/DF): O
Superior Tribunal de Justiça já decidiu que a ausência de intimação do advogado
do servidor para a oitiva de testemunha acarreta nulidade do PAD, por
cerceamento de defesa.
Aplicação: O policial
penal e seu advogado devem ser notificados com antecedência razoável sobre a
data e local de oitivas, interrogatórios e prazos para defesa.
4.3. A Proporcionalidade da
Pena
Os tribunais também avaliam a
proporcionalidade da pena aplicada pela administração pública.
Julgado STF (MS 32.766
AgR/DF): O STF tem o entendimento de que o Poder Judiciário pode
analisar a legalidade do PAD e a proporcionalidade da pena, mas não pode
adentrar no "mérito administrativo" (se a decisão foi justa ou
injusta do ponto de vista da gestão). Pode, no entanto, anular uma demissão se
for manifestamente desproporcional à falta cometida.
Aplicação: Uma
demissão por uma falta leve (como um pequeno atraso) seria vista como
desproporcional e poderia ser anulada judicialmente.
O Conhecimento como Escudo
Legal
As Sindicâncias e os Processos
Administrativos Disciplinares (PAD) são ferramentas legítimas do Estado para
garantir a probidade e a eficiência do serviço público. Para o Policial Penal,
a submissão a esses ritos é parte do regime jurídico de uma carreira de
segurança pública.
O conhecimento dos direitos e
garantias constitucionais (contraditório, ampla defesa, presunção de inocência)
e dos trâmites legais do PAD e da sindicância é o maior escudo do servidor
contra abusos e injustiças. Atuar com base na legalidade e, se necessário,
defender-se com conhecimento de causa, é o que diferencia o profissional do
servidor despreparado. A transparência do processo e a garantia da defesa são
pilares inegociáveis do Estado de Direito, que a Polícia Penal deve zelar.
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