sábado, 6 de dezembro de 2025

Direitos de Defesa do Servidor Policial Penal e Trâmites

 


Sindicâncias e Processos Administrativos Disciplinares (PAD): Direitos de Defesa do Servidor Policial Penal e Trâmites

A atuação do Policial Penal, embora pautada pela legalidade e pelo profissionalismo, não está isenta de escrutínio. A complexidade do ambiente prisional e a natureza coercitiva da função podem levar a situações que demandam a apuração de condutas, seja por denúncias de presos, visitantes, ou por observações da própria chefia. O instrumento utilizado pelo Estado para essa apuração é o Direito Administrativo Disciplinar, materializado em dois procedimentos principais: a Sindicância e o Processo Administrativo Disciplinar (PAD).

A Emenda Constitucional nº 104/2019, que inseriu a Polícia Penal no rol dos órgãos de segurança pública, não alterou o regime jurídico dos servidores (que permanece civil), mas reforçou a necessidade de transparência e rigor na apuração de desvios. O conhecimento dos trâmites disciplinares é vital para que o policial penal, se um dia for alvo de uma apuração, possa exercer plenamente seu direito de defesa, garantido pela Constituição Federal.

Este capítulo do manual jurídico vai apresentar os trâmites da Sindicância e do PAD, os direitos e garantias do servidor Policial Penal e ilustrar com exemplos práticos e julgados dos Tribunais Superiores (STF e STJ).


1. O Poder Disciplinar do Estado e a Finalidade da Apuração

O Estado possui o "poder disciplinar", que é a capacidade de fiscalizar a conduta de seus servidores e aplicar sanções em caso de descumprimento dos deveres funcionais ou violação das proibições previstas no Estatuto dos Servidores Públicos (Lei Estadual de São Paulo, por exemplo).

A finalidade da sindicância e do PAD não é punir arbitrariamente, mas sim garantir a moralidade, a eficiência e a legalidade da administração pública. A punição é a consequência da comprovação de uma falta grave, dentro de um rito que respeita as garantias constitucionais.


2. A Sindicância: Instrumento Preliminar de Apuração

A sindicância é um procedimento preliminar e simplificado de investigação. Não é, em si, um processo punitivo, mas uma fase que visa coletar indícios de autoria e materialidade de uma possível infração disciplinar.

2.1. Tipos de Sindicância

A doutrina e a jurisprudência distinguem três tipos de sindicância:

  • Sindicância Investigativa ou Preparatória: A mais comum. Seu objetivo é apenas apurar a ocorrência de uma irregularidade e identificar o(s) autor(es) para decidir se há elementos suficientes para a instauração de um PAD. Seus resultados podem ser: arquivamento, instauração de PAD, ou, se a falta for leve e a legislação local permitir, a aplicação direta de uma penalidade de advertência ou suspensão de até 30 dias (a depender da legislação estadual).

  • Sindicância Punitiva: Aplicável em alguns Estados para faltas leves, onde a penalidade de advertência ou suspensão (até 30 dias) pode ser aplicada diretamente, desde que garantido o direito de defesa do servidor.

  • Sindicância Patrimonial: Focada na apuração da evolução patrimonial incompatível com a renda do servidor (embora isso geralmente demande um PAD).

2.2. O Trâmite Simplificado

A sindicância é conduzida por uma comissão de servidores ou por uma autoridade sindicante designada. O rito é menos formal que o PAD.

 

Exemplo Prático (Sindicância Investigativa):

A chefia de plantão recebe uma denúncia anônima de que um policial penal está faltando ao serviço por escala, o que é proibido pelo regimento interno, sem a devida compensação ou desconto. A autoridade competente instaura uma sindicância para apurar a veracidade dos fatos. A comissão ouve o denunciante (se identificado), o Policial Penal em questão e verifica as folhas de ponto. Se os indícios se confirmarem, a Sindicância recomenda a instauração de um PAD para aprofundar a apuração da falta grave de inassiduidade.


3. O Processo Administrativo Disciplinar (PAD): O Rito Formal

O PAD é o instrumento formal e obrigatório para a apuração de faltas disciplinares graves, cuja penalidade possa resultar em suspensão superior a 30 dias, demissão, ou cassação de aposentadoria. Ele é regido pelos princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa (Art. 5º, LV, CF).

3.1. Fases do PAD

O PAD segue um rito trifásico estabelecido pela maioria dos estatutos de servidores:

a) Instauração

Inicia-se com a publicação da portaria que designa a comissão processante (composta por três servidores estáveis, de nível hierárquico igual ou superior ao do acusado) e delimita os fatos a serem apurados.

b) Inquérito

É a fase principal e probatória, dividida em três subfases:

  1. Instrução: A produção de provas. Oitivas de testemunhas, interrogatório do acusado, perícias, juntada de documentos, etc.

  1. Defesa (ou Defesa Prévia): Após a instrução, o servidor é citado para apresentar sua defesa escrita, por meio de advogado. É o momento de rebater as acusações e apresentar contraprovas.

  1. Relatório: A comissão elabora um relatório conclusivo, opinando pela inocência (absolvição) ou pela culpabilidade do servidor, e sugerindo a penalidade cabível.

c) Julgamento

A autoridade competente (o Secretário de Administração Penitenciária, em São Paulo) analisa o relatório da comissão e profere a decisão final, que pode acatar o relatório ou, motivadamente, divergir dele (agravando, abrandando ou isentando a pena).

3.2. Direitos e Garantias do Policial Penal no PAD

A Constituição Federal e a legislação garantem ao servidor amplos direitos de defesa durante o PAD:

  • Contraditório e Ampla Defesa: O direito de ser notificado de todas as fases do processo, de ter acesso a todos os autos, de produzir provas, de inquirir testemunhas e de ser defendido por advogado. A ausência de defesa técnica (advogado) no PAD não gera por si só a nulidade absoluta do processo, conforme Súmula Vinculante nº 5 do STF.

A Súmula Vinculante nº 5 do Supremo Tribunal Federal (STF) possui a seguinte redação:

"A falta de defesa técnica por advogado no processo administrativo disciplinar não ofende a Constituição."

O que isso significa?

Em termos simples, o STF firmou o entendimento de que a presença de um advogado constituído ou de um defensor dativo não é obrigatória para a validade de um Processo Administrativo Disciplinar (PAD). A ausência de defesa técnica (advogado) não gera, por si só, a nulidade do processo administrativo disciplinar.

Contexto e Justificativa

Antes da edição desta súmula em 2008, havia  divergência nos tribunais sobre a necessidade de advogado no PAD. O Superior Tribunal de Justiça (STJ), por exemplo, entendia que a presença do advogado era obrigatória, pois a ampla defesa e o contraditório seriam prejudicados sem a representação técnica.

No entanto, o STF, ao julgar o Recurso Extraordinário (RE) nº 434.059, que deu origem à súmula, entendeu que:

Ampla Defesa: O direito à ampla defesa é garantido pela possibilidade de o servidor apresentar seus argumentos, produzir provas, e ter acesso aos autos do processo, mesmo sem a assistência de um advogado.

Faculdade, não Obrigatoriedade: A Lei nº 8.112/90 (Estatuto dos Servidores Públicos Federais, que serve de base para muitos estatutos estaduais) prevê a possibilidade de o servidor ser assistido por advogado, mas não impõe a obrigatoriedade, sendo uma faculdade do interessado.

Segurança Jurídica: A edição da súmula visava pacificar o entendimento e evitar a anulação em massa de milhares de processos administrativos disciplinares que já haviam sido concluídos sem a presença de um advogado.

Posição Atual

A Súmula Vinculante nº 5 continua em vigor e é de observância obrigatória por todos os órgãos do Poder Judiciário e da Administração Pública. Portanto, em um PAD, o servidor público tem o direito de contratar um advogado para sua defesa, mas, se optar por não fazê-lo, o processo continua válido, desde que os demais direitos de defesa (como o acesso aos autos e a possibilidade de se manifestar) sejam respeitados.

  • Presunção de Inocência: O servidor é presumido inocente até a condenação final pela autoridade julgadora.

  • Provas Lícitas: Apenas provas obtidas por meios lícitos podem ser utilizadas (ex: gravação ambiental ilegal sem autorização judicial não pode ser usada).

  • Imparcialidade: A comissão processante deve ser imparcial e livre de suspeição ou impedimento.

 

Exemplo Prático (PAD):

Um policial penal é acusado de agredir um preso (falta grave e crime). A autoridade instaura o PAD. A comissão ouve o preso, as testemunhas (outros presos e agentes), requisita imagens das câmeras de segurança e ouve o acusado (interrogatório). O advogado do Policial Penal tem acesso a tudo e, na defesa, apresenta um laudo médico que atesta que o preso já tinha as lesões antes do incidente, e questiona a credibilidade das testemunhas do detento. A comissão, analisando as provas, conclui pela inocência por falta de provas robustas e recomenda a absolvição.


4. Exemplos de Julgados dos Tribunais Superiores (STF e STJ)

A jurisprudência dos tribunais superiores é rica em casos que reforçam as garantias dos servidores públicos em processos disciplinares.

4.1. A Necessidade de Defesa Técnica no PAD

O STF consolidou o entendimento de que a defesa técnica por advogado é dispensável no PAD, sob pena de nulidade.

[Súmula Vinculante nº 5 do STF]: "A falta de defesa técnica por advogado no processo administrativo disciplinar não ofende a Constituição."

Aplicação: Se o policial penal não tiver um advogado ou se a instituição não nomear um defensor dativo em caso de ausência, todo o processo é não é nulo.

4.2. O Contraditório e a Ampla Defesa em Todas as Fases

O STJ tem decisões que reforçam a necessidade de notificação do servidor em todos os atos do PAD.

Julgado STJ (MS 13.916/DF): O Superior Tribunal de Justiça já decidiu que a ausência de intimação do advogado do servidor para a oitiva de testemunha acarreta nulidade do PAD, por cerceamento de defesa.

Aplicação: O policial penal e seu advogado devem ser notificados com antecedência razoável sobre a data e local de oitivas, interrogatórios e prazos para defesa.

 

4.3. A Proporcionalidade da Pena

Os tribunais também avaliam a proporcionalidade da pena aplicada pela administração pública.

Julgado STF (MS 32.766 AgR/DF): O STF tem o entendimento de que o Poder Judiciário pode analisar a legalidade do PAD e a proporcionalidade da pena, mas não pode adentrar no "mérito administrativo" (se a decisão foi justa ou injusta do ponto de vista da gestão). Pode, no entanto, anular uma demissão se for manifestamente desproporcional à falta cometida.

Aplicação: Uma demissão por uma falta leve (como um pequeno atraso) seria vista como desproporcional e poderia ser anulada judicialmente.


O Conhecimento como Escudo Legal

As Sindicâncias e os Processos Administrativos Disciplinares (PAD) são ferramentas legítimas do Estado para garantir a probidade e a eficiência do serviço público. Para o Policial Penal, a submissão a esses ritos é parte do regime jurídico de uma carreira de segurança pública.

O conhecimento dos direitos e garantias constitucionais (contraditório, ampla defesa, presunção de inocência) e dos trâmites legais do PAD e da sindicância é o maior escudo do servidor contra abusos e injustiças. Atuar com base na legalidade e, se necessário, defender-se com conhecimento de causa, é o que diferencia o profissional do servidor despreparado. A transparência do processo e a garantia da defesa são pilares inegociáveis do Estado de Direito, que a Polícia Penal deve zelar.

 Edson Moura

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