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domingo, 21 de dezembro de 2025

O Policial Penal como Agente de Transformação e a Superação do Paradigma do Carcereiro


Este é ensaio técnico-doutrinário estruturada para compor a segunda edição do Manual Jurídico do Policial Penal. O texto aborda a transição paradigmática da carreira, o fundamento legal da ressocialização e a incompatibilidade do modelo de "carcereiro" com a gestão penitenciária moderna em 2025.

A Ressocialização como Dever Funcional: O Policial Penal como Agente de Transformação e a Superação do Paradigma do Carcereiro

A Nova Era da Polícia Penal

A promulgação da Emenda Constitucional nº 104/2019 não apenas criou uma nova força de segurança pública; ela consolidou uma transição de identidade que vinha sendo gestada há décadas. O Policial Penal de 2025 não é um herdeiro dos antigos "carcereiros" ou "guardas de presídio", figuras cuja função limitava-se à custódia estática e ao exercício da força bruta. Hoje, o Policial Penal é o operador primário da Lei de Execução Penal (LEP), e sua função precípua, conforme definido no Art. 1º da referida lei, é proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado.

Este capítulo do Manual Jurídico dedica-se a uma verdade incontestável: não há mais espaço nas Secretarias de Administração Penitenciária (SAP) para o pensamento retrógrado. O profissional que ainda enxerga o sistema prisional apenas como um depósito de seres humanos está em dissonância não apenas com a lei, mas com a eficiência da segurança pública.

O Fundamento Jurídico da Função: A LEP como Norte

A Lei nº 7.210/84 (LEP) é clara ao estabelecer que o objetivo da execução penal é duplo: castigar (no sentido de aplicar a sanção imposta pelo Estado) e reabilitar. O Policial Penal, enquanto braço executivo do Estado dentro das unidades, é o garantidor desse equilíbrio.

Quando o artigo 10 da LEP afirma que "a assistência ao preso e ao internado é dever do Estado, objetivando prevenir o crime e orientar o retorno à convivência em sociedade", ele está endereçando uma ordem direta ao Policial Penal. Negar a ressocialização é, portanto, uma prevaricação funcional e ética. O policial que obstrui o acesso ao estudo, ao trabalho ou ao tratamento digno está violando o próprio estatuto que o rege.

O Custo do "Modelo Carcereiro"

O pensamento do "antigo carcereiro" baseia-se na premissa de que a punição deve ser exacerbada por maus-tratos ou pela privação de direitos fundamentais além da liberdade. No entanto, a história e as estatísticas de segurança pública em 2025 provam que esse modelo é o maior recrutador de facções criminosas.

Onde o Estado se faz presente apenas pela opressão e nega a ressocialização, o crime organizado preenche o vácuo, oferecendo o suporte que a administração nega. O policial que mantém uma postura puramente punitivista acaba, ironicamente, fortalecendo as estruturas criminosas que ele jurou combater. A Secretaria de Administração Penitenciária moderna exige um gestor de crises e um mediador de conflitos, não um agente de tortura psicológica ou física.


Eficiência vs. Retrocesso

Para ilustrar a necessidade dessa mudança de mentalidade, analisemos dois cenários práticos que podem ocorrer no cotidiano das unidades:

Caso A: O Sucesso do Método APAC ¹ e a Cogestão.

Em unidades onde o Policial Penal atua como facilitador de programas de ressocialização, como o Método APAC, os índices de reincidência caem drasticamente para menos de 15%. Nestes locais, o policial fiscaliza com rigor, mas incentiva o trabalho e o estudo. O resultado é um ambiente de trabalho mais seguro para o próprio servidor, com baixíssimo índice de motins e agressões.

Caso B: A Falha da Custódia Punitivista (O Exemplo de Rebeliões)

Considere o caso de unidades prisionais que, historicamente, negligenciaram a assistência prevista na LEP em favor de um regime de "tranca" ininterrupta e negação de banho de sol. Dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) mostram que a falta de perspectivas de ressocialização é o principal estopim para rebeliões violentas. O policial "carcereiro" que acredita estar sendo "duro com o crime" ao negar direitos básicos, na verdade, está colocando a sua própria vida e a de seus colegas em risco ao transformar a unidade em um barril de pólvora.

A Ressocialização como Estratégia de Segurança Pública

É fundamental que o Policial Penal entenda que a ressocialização não é um "favor" ao preso, mas uma estratégia de defesa social. Cerca de 95% da população carcerária retornará às ruas em algum momento. A pergunta que o profissional deve se fazer é: quem retornará para o meu bairro? Alguém que aprendeu uma profissão e foi tratado com dignidade legal, ou alguém que foi brutalizado por anos?

A segurança pública não termina na porta do presídio; ela começa lá. O policial que facilita a educação (Art. 17 a 21 da LEP) está combatendo o crime de forma muito mais eficaz do que aquele que se limita a bater grades.

O Perfil Profissional do Policial Penal em 2025

A modernização do sistema exige competências que o antigo carcereiro não possui:

Inteligência Emocional: Para lidar com a pressão sem recorrer à violência desnecessária.

Conhecimento Técnico-Jurídico: Saber citar a LEP para fundamentar uma decisão, garantindo o direito do preso sem ceder à indisciplina

Visão Humanista: Entender que a dignidade humana é irrenunciável, conforme a Constituição Federal.

Aqueles que insistem em manter condutas de desrespeito, truculência injustificada ou negação de assistência encontram-se hoje sob o rigor das Corregedorias e do Sistema de Justiça. A SAP não comporta mais o amadorismo da vingança privada disfarçada de função pública.

A transição do "carcereiro" para o "Policial Penal" é um caminho sem volta. A ressocialização é o coração da execução penal e o único caminho sustentável para a redução da criminalidade. Este Manual Jurídico serve como um lembrete: ser Policial Penal é ser um agente da lei, e a lei manda reintegrar.

O modelo "carcereiro" focado apenas no castigo cria vácuos de assistência. Onde o Estado não oferece assistência material, jurídica e social, o crime organizado entra para suprir. O policial que nega um direito básico ao preso está, indiretamente, empurrando este indivíduo para os braços das facções criminosas.

Em 2017, o Rio Grande do Norte viveu uma das maiores tragédias carcerárias em Alcaçuz. Investigações posteriores demonstraram que o total abandono dos processos de ressocialização e a mentalidade de "apenas trancar" permitiram que o Estado perdesse o controle total dos pavilhões para o crime organizado. O modelo de "carcereiro" faliu, resultando em mortes brutais e um custo bilionário para a retomada da ordem.

O Risco à Integridade do Servidor: Unidades prisionais onde impera a mentalidade de repressão cega são estatisticamente mais propensas a rebeliões violentas. O policial penal moderno usa a ressocialização como ferramenta de inteligência e segurança. Um ambiente onde o preso estuda e trabalha é um ambiente de baixa tensão, reduzindo o risco de morte e agressão contra o próprio policial.

O Estado de Coisas Inconstitucional: O Supremo Tribunal Federal (STF), na ADPF 347, reconheceu que o sistema prisional brasileiro vive um "Estado de Coisas Inconstitucional". O policial que mantém práticas retrógradas está alimentando essa ilegalidade, sujeitando o Estado a sanções internacionais e processos de indenização que recaem sobre o erário.

O profissional que abraça essa missão protege a sociedade, valoriza sua carreira e honra a farda que veste. O pensamento retrógrado, por outro lado, é um fardo que o Estado brasileiro não pode mais carregar. A excelência no serviço penal em 2025 é medida pela capacidade de transformar o cárcere em um espaço de justiça, disciplina e, sobretudo, de novas oportunidades.

Não há mais lugar na estrutura do Estado para o profissional que se orgulha de ser um "carrasco". A modernização tecnológica (monitoramento eletrônico, biometria, scanners corporais) e jurídica do sistema penitenciário exige um Policial Penal que seja um intelectual da segurança pública.

O policial que agride, que humilha ou que sabota os processos educacionais dentro do presídio é um agente de insegurança. Ele é um corpo estranho na Secretaria de Administração Penitenciária, pois sua conduta gera reincidência, gera ódio e gera despesas para o contribuinte.

A segunda edição deste Manual Jurídico reafirma: ser Policial Penal é entender que a arma mais poderosa contra o crime organizado não é o fuzil na muralha, mas o livro e a ferramenta de trabalho dentro da cela. A ressocialização é a nossa missão constitucional. Quem não compreende isso, já foi deixado para trás pela história.

¹ O Método APAC (Associação de Proteção e Assistência aos Condenados) é uma metodologia inovadora para a execução penal no Brasil, focada na humanização do sistema prisional e na ressocialização, onde o condenado (recuperando) assume a responsabilidade por sua recuperação, com base em 12 elementos, incluindo trabalho, estudo, religião, participação da comunidade e ajuda mútua, com o objetivo de reduzir a reincidência criminal através da disciplina, autoconfiança e responsabilidade, substituindo a lógica punitiva por uma construtiva, com apoio do judiciário e da sociedade civil. 

Como funciona:

  • Entidade Civil: A APAC é uma entidade privada, sem fins lucrativos, que auxilia o Estado na execução da pena.

  • Autonomia: Cada APAC é autônoma e gerida de forma independente, mas seguindo os princípios do método.

  • Recuperando Ativo: O preso não é um passivo, mas um agente ativo, que se ajuda e ajuda outros (ajuda mútua).

  • Disciplina e Regras: O detento segue regras rígidas, participa de atividades diárias e não tem o ócio como opção, aprendendo disciplina e autodisciplina. 

Os 12 Elementos do Método:

  1. Participação da Comunidade: A sociedade civil é fundamental.
  2. Ajuda Mútua: Recuperando ajudando recuperando (mutirão).
  3. Trabalho: Atividades laborais para desenvolver responsabilidade.
  4. Espiritualidade: Valorização da fé e valores morais (Jornada de Libertação com Cristo).
  5. Assistência Jurídica: Acompanhamento legal.
  6. Assistência à Saúde: Cuidado com o bem-estar físico e mental.
  7. Valorização Humana: Respeito e dignidade ao recuperando.
  8. Família: Fortalecimento dos laços familiares.
  9. Formação de Voluntários: Criação de uma rede de apoio.
  10. Centros de Reintegração Social (CRS): Locais adaptados para diferentes regimes.
  11. Observação do Comportamento: Avaliação para progressão de regime.
  12. Jornada de Libertação com Cristo: Palestras, meditações e testemunhos. 

Objetivos e Resultados:

  • Humanização: Condições dignas de cumprimento de pena.
  • Reintegração Social: Preparar o indivíduo para retornar à sociedade.
  • Redução da Reincidência: Evitar que o egresso volte a cometer crimes. 

O Método APAC, criado por Mário Ottoboni em 1972, é uma referência nacional e internacional, atuando como uma alternativa eficaz para a crise no sistema prisional, focado na recuperação e reintegração.

Edson Moura

 

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