A PRISIONIZAÇÃO DO POLICIAL PENAL: UMA ANÁLISE JURÍDICA E PSICOSSOCIAL À LUZ DA LEP E DAS REGRAS DE MANDELA
O Cárcere como
Instituição Total
No âmbito do Direito
Penitenciário, a execução da pena não deve ser entendida apenas como a
restrição ambulatorial do sentenciado, mas como a gestão de um ecossistema
complexo onde o Estado exerce soberania. Entretanto, o que a prática revela — e
este Manual busca diagnosticar — é o fenômeno da prisionização. Embora a
literatura clássica de Donald Clemmer foque no detento, o Policial Penal,
enquanto agente garantidor, é o "sentenciado sem crime", submetido a
um processo de aculturação que compromete sua integridade psíquica e sua
higidez jurídica.
Para o Policial Penal, a prisionização não é uma escolha, mas uma patologia ocupacional derivada da convivência em uma Instituição Total (Goffman). Juridicamente, o Estado falha ao não prever mecanismos de "descompressão", permitindo que o servidor absorva a subcultura criminal como mecanismo de sobrevivênciaA Simbiose do Vernáculo: O "Pajubá" e a Identidade Funcional
A prisionização manifesta-se,
primeiramente, na comunicação. O Policial Penal, para gerir o conflito, acaba
adotando o código linguístico do custodiado. Quando o servidor utiliza termos
como "xeque" (o líder da cela), "jega" (a cama de cimento),
ou identifica um "talco" (fuga) ou um "boi" (privada), ele
está operando em uma zona cinzenta de assimilação cultural.
O uso de gírias como
"caminhar no trilho" (cumprir as regras internas da massa) ou
"catar um boi" (obter uma vantagem indevida) não é apenas semântico;
ele altera a percepção jurídica do agente. No tribunal da consciência e nas
sindicâncias administrativas, a adoção dessa linguagem pode ser o primeiro passo
para a perda do distanciamento emocional necessário à impessoalidade
administrativa (Art. 37, CF/88). O policial que fala como o preso, muitas
vezes, passa a enxergar o mundo através da mesma ótica de exclusão e suspeição
generalizada.
O Vácuo Estatal e a Lei de
Execução Penal (LEP)
A Lei nº 7.210/84 (LEP) é um
monumento legislativo de intenções humanitárias, mas sua ineficácia prática é o
principal combustível da prisionização do servidor. O Art. 1º da LEP estabelece
como objetivo "proporcionar condições para a harmônica integração social
do condenado". Contudo, o Estado negligencia o meio pelo qual isso ocorre:
o Policial Penal.
A Ausência de Assistência ao
Servidor
Enquanto a LEP prevê assistências
material, à saúde, jurídica e educacional ao preso (Arts. 10 a 21), o Estado é
omisso em fornecer o mesmo amparo ao policial que viabiliza esses direitos. A
falta de efetivo gera o que chamamos de "vácuo de poder". Quando o
Estado não ocupa o espaço físico com servidores em número suficiente e com saúde
mental preservada, as facções criminosas preenchem essa lacuna. O policial,
sentindo-se desamparado pela cúpula administrativa, entra em "modo de
sobrevivência", o que acelera seu endurecimento emocional.
O Desvio de Função como
Gatilho
A não implementação das
diretrizes da LEP força o policial a ser psicólogo, assistente social e médico
improvisado. Essa sobrecarga, sem o devido preparo jurídico-psicológico, gera o
sentimento de que ele é um "escravo do sistema". Juridicamente, isso fere
o princípio da dignidade da pessoa humana, estendido ao trabalhador, e o dever
de segurança no trabalho.
O Descumprimento das Normas de
Mandela
As Regras Mínimas das Nações
Unidas para o Tratamento de Presos (Regras de Mandela), em sua versão revisada
de 2015, são claras ao tratar do pessoal penitenciário. A Regra 74 afirma que
"a administração prisional deve prover uma organização e um estatuto
adequados para o pessoal, com vista a recrutar e reter homens e mulheres de
integridade, humanidade e competência profissional".
No Brasil, a realidade é o
oposto:
A Regra 75 exige treinamento contínuo antes
e durante a função. A ausência desse treinamento focado em inteligência
emocional faz com que o policial recorra ao uso da força ou ao autoritarismo
excessivo como única linguagem entendida no "pavilhão", um sintoma
clássico de prisionização.
A Regra 77 destaca a necessidade de os
servidores terem acesso a serviços de apoio para lidar com o estresse da
profissão. A inexistência de programas de saúde mental robustos faz com que o
policial leve o "clima de cadeia" para dentro de casa.
O Fenômeno da Hipervigilância
e a Vida Extramuros
O efeito jurídico da
prisionização estende-se à vida privada. O policial penal prisionizado vive em
estado de alerta paranoide. Ao sair do plantão, ele não consegue "baixar a
guarda". Ele monitora saídas em restaurantes, evita sentar de costas para
a porta e desconfia de qualquer interação social.
Do ponto de vista do Direito de
Família, esse comportamento frequentemente resulta em divórcios e alienação
parental. O servidor passa a tratar os filhos como se estivesse dando ordens no
"pátio de sol" e a esposa como alguém que está tentando
"atravessar" (enganar) sua autoridade. O Estado, ao não fornecer
mecanismos de desprisionização, torna-se corresponsável pela destruição dos núcleos
familiares de seus agentes.
A Falência do Modelo
Punitivista e o "Ceticismo Jurídico"
O policial prisionizado
desenvolve um profundo ceticismo em relação ao sistema de justiça. Ao ver o
"entra e sai" de detentos devido a audiências de custódia ou progressões
de regime que ele considera injustas, o agente passa a descrer na eficácia da
norma. Esse descrédito jurídico é perigoso: ele pode levar à prevaricação por
desânimo ou ao excesso por frustração.
Quando o policial sente que o
Estado protege o "ladrão" (termo genérico usado no sistema para
designar o preso) e ignora o servidor, ocorre uma ruptura do pacto de lealdade
institucional. O servidor passa a agir apenas para não ser punido pela
Corregedoria, e não por acreditar na ressocialização.
Consequências Médicas e a
Responsabilidade Civil do Estado
A prisionização é a antessala da
Síndrome de Burnout e do Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT). O
cérebro, condicionado a responder apenas a estímulos de ameaça, atrofia áreas
ligadas à empatia e ao relaxamento.
Juridicamente, existe aqui o
dever de indenizar. O Estado que confina seu servidor em ambientes insalubres
(físicos e mentais) sem o devido suporte de EPIs psicológicos comete um ilícito
por omissão. O Policial Penal que se torna um "robô do sistema",
incapaz de sentir alegria ou relaxar, é uma vítima de um acidente de trabalho
de duração continuada.
Propostas de Superação no
Manual Jurídico
Para mitigar a prisionização,
este Manual propõe uma nova hermenêutica da execução penal:
Implementação do Art. 1º da LEP para o
Servidor: Entender que a integração social começa pelo garantidor do sistema.
Sem um policial saudável, não há ressocialização do preso.
Quarentena Psicológica Obrigatória:
Instituir períodos de afastamento das carceragens para atividades
administrativas ou de formação, quebrando o ciclo de exposição ao ambiente
hostil.
Humanização das Unidades (Regra 5 de
Mandela): Ambientes com mais luz natural, menor poluição sonora e melhor
infraestrutura não servem apenas ao preso, mas evitam que o policial se sinta
"enterrado vivo".
Criação de Centros de Atenção Psicossocial Exclusivos: Onde o policial possa falar sobre a "tranca", o "corre" e a "pressão" sem o medo de ser julgado ou punido administrativamente.
A prisionização é a maior ameaça
à carreira do Policial Penal moderno. Ela é o resultado de um Estado que se faz
presente pela punição, mas se ausenta na assistência. Ao ignorar as diretrizes
da LEP e as Regras de Mandela para seus próprios servidores, o Brasil cria um
exército de homens e mulheres mentalmente encarcerados.
Este Manual Jurídico do Policial
Penal reafirma: a segurança pública não se faz apenas com armas e algemas, mas
com a preservação da humanidade de quem as porta. Combater a prisionização é um
ato de resistência jurídica e de valorização da vida de quem dedica seus dias a
vigiar a escuridão para que a sociedade possa dormir em paz. O Policial Penal
não pode ser a próxima vítima do sistema que ele mesmo opera.
Edson Moura
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