sexta-feira, 31 de julho de 2015

Entendendo a "Teoria da Cegueira Deliberada"

O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo publicou em 15/04/2014, Acórdão no qual aplicou-se a chamada   “Teoria da Cegueira Deliberada”, também conhecida como “Willful Blindness Doctrine” (Doutrina da cegueira intencional), “Ostrich Instructions” (Instruções de avestruz), “Conscious Avoidance Doctrine” (Doutrina do ato de ignorância consciente), entre outros nomes.

Trata-se de teoria desenvolvida pela Suprema Corte dos Estados Unidos, que a tem aplicado em situações nas quais o agente finge não enxergar a ilicitude da procedência de bens, direito e valores com a intenção deliberada de auferir vantagens.

Trata-se de uma metáfora que compara o agente público ao  avestruz, que enterra sua cabeça na terra para não tomar conhecimento de algo que ocorre ao seu redor, no caso do agente, a natureza ou extensão do ilícito em curso.

No caso enfrentado pelo Tribunal de Justiça paulista, os desembargadores entenderam ser o caso de manter a condenação de ex-prefeito por improbidade administrativa, nos seguintes termos:

“Na verdade, o caracterizado superfaturamento da contratação da prestação do serviço posto em disputa iniciou a partir da realização do Termo de Parceria (fls. 111/112), em valor muito superior ao praticado pela empresa anterior (fls. 133/136), para efetivar o mesmo serviço, porém, sem demonstrar o atingimento das gloriosas metas a que tinha se comprometido. (…)
Guardadas as devidas proporções, é evidente, em tempo de exposição pública e notória pelo julgamento televisionado ao vivo da Ação Penal 470 pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal, em que de forma corajosa e destemida o Poder Judiciário não se encolheu, frente aos muitos interesses envolvidos, na condenação de criminosos que estavam a praticar infrações penais (corrupção passiva, ativa, lavagem de dinheiro) e, nesta ocasião, uma determinada teoria foi suscitada pelo sempre profundo Ministro Celso de Mello, e que poderá ser agora aventada neste caso concreto, qual seja TEORIA DA CEGUEIRA DELIBERADA (…)

Ainda que esta teoria tenha sua incidência e aplicação na prática de ilícitos penais, mais especificamente em relação ao crime de lavagem de dinheiro, tal como fez o eminente Ministro Celso de Mello em recentíssimo julgamento acima mencionado, já foi ela também reconhecida em relação aos crimes eleitorais, bem como naquele famoso caso do furto ao Banco Central em Fortaleza. Por outro lado, é, em relação ao ilícito administrativo praticado neste caso concreto, perfeitamente adequada a sua incidência, na medida em que os corréus fingiram não perceber o superfaturamento praticado com a nova contratação por intermédio de Termo de Parceria, com objetivo único de lesar o patrimônio público, não havendo agora como se beneficiarem da própria torpeza. (…).”

Foi a primeira vez – ao que se tem conhecimento – que o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo aplicou tal teoria, seguindo o exemplo do Supremo Tribunal Federal. No entanto, para que ocorra a aplicação da Teoria da Cegueira Deliberada, é necessário que o agente tenha conhecimento de que os bens, direitos ou valores sejam provenientes de crimes e, ainda, que tenha agido de modo indiferente a esse conhecimento, e tal evidência deve restar minimamente comprovada nos autos.

Com isso, sua aplicação busca punir aquele que se coloca, de modo intencional, em estado de ignorância ou desconhecimento para não saber com detalhes as circunstâncias fáticas de uma situação suspeita, o que demanda ao menos a existência de um contexto probatório neste sentido. Em outras palavras, o Judiciário deverá aplicar tal teoria com parcimônia, sob pena de se resvalar na odiosa responsabilidade penal objetiva.

Por esta razão, a aplicação da teoria recebeu e recebe inúmeras críticas, por permitir, muitas vezes, que ocorra uma condenação criminal em casos nos quais o Estado falhe na produção de provas com relação ao real conhecimento do réu sobre uma situação fática suspeita.

Nesse sentido, ABRAMOWITZ & BOHRER (2007) apontam que a doutrina da conscious avoidance, também conhecida como willful blindness ou ignorância deliberada (deliberate ignorance) permite que haja uma condenação criminal nos casos em que o Estado falha na produção de provas acerca do real conhecimento do réu sobre uma situação fática suspeita. Tal doutrina afirma que, apesar do acusado não ter conhecimento dos fatos, essa falta de conhecimento deve-se à prática de atos afirmativos de sua parte para evitar a descoberta de uma situação suspeita. Em outras palavras, a doutrina da cegueira deliberada permite que se presuma o conhecimento do acusado nos casos em que não há prova concreta do seu real envolvimento com a situação suspeita. Dessa forma, o réu pode ser condenado, apesar de não ter o real conhecimento da atividade criminosa. Por fim, os autores alertam que “a doutrina da conscious avoidance cria o risco de que o júri condene o réu simplesmente porque acredita que o acusado não tenha se esforçado suficientemente para saber a verdade sobre os fatos”.
Em razão do pensamento acima citado, há uma forte tendência da suprema Corte americana para se evitar o uso abusivo da teoria. Os juízes ponderaram que a teoria da cegueira deliberada não pode ser aplicada a todo e qualquer caso de suposto desconhecimento.

Para que a teoria seja aplicada três requisitos fundamentais devem ser analisados, segundo propõe Ramon Ragués i Vallès, quais sejam:

1º- Suspeita justificada do sujeito sobre a concorrência de sua conduta à atividade. É o agente que deixa de obter essa consciência voluntariamente, pode haver casos, inclusive, em que o agente cria barreiras ao conhecimento para não obter o conhecimento pleno do que suspeita;

2º- Disponibilidade de informações que possam aclarar o conhecimento do agente. Nesse caso, documentos, provas e indícios devem estar ao alcance do indivíduo de tal modo, que ele possa concluir que o crime seria facilmente descoberto. Para que a teoria da cegueira deliberada possa ser aplicada deve haver voluntariedade e intenção de se manter na ignorância, quando há possibilidade de se obter o conhecimento;

3º- há, por fim, um terceiro requisito, subjetivo, citado por Ragués i Vallès, que é a intenção da manutenção do estado de ignorância visando a proteção do agente da descoberta do delito e futura condenação, de tal modo que sempre poderá alegar que nada sabia a respeito.

Ragués resume os requisitos acima da seguinte maneira: “Em síntese, a cegueira deliberada somente é equiparada ao dolo eventual nos casos de criação consciente e voluntária de barreiras que evitem o conhecimento de indícios sobre a proveniência ilícita de bens, nos quais o agente represente a possibilidade da evitação recair sobre atos de lavagem de dinheiro”.

Baseado no que foi exposto, conclui, com muita propriedade, André Luís Callegari e Ariel Barazzetti Weber, entendimento do qual, concorda-se, a preocupação para que uma conduta culposa não seja punida como se dolosa fosse – principalmente no que tange ao dolo eventual no delito de lavagem de dinheiro, por não ser pacífico na doutrina -, utilizando, para tanto, a cegueira deliberada. Desafio a ser enfrentado pela doutrina e pelo judiciário brasileiro.

Edson Moura (E.M. Matéria de Direito)

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